Esqueça tudo o que você conhece ou imagina sobre a Itália.
O Comida com História vai te levar para um destino italiano quase desconhecido pela grande maioria dos brasileiros, onde a autenticidade é quase uma marca registrada. Um local de paisagens magníficas, história antiquíssima, ricas tradições, e onde a gastronomia reflete exatamente o que oferta o território.
Bem-vindo à Calábria, essa região ao sul da Itália, localizada na ponta do pé da bota do mapa do país, quase encostada na Sicília.
Aqui, o verde de parques nacionais contrasta com paisagens secas, amareladas, e se intercala com olivais centenários. E contornando tudo isso, dois mares, o Tirreno e o Jônico, completam o cenário estonteante.
Uma viagem entre o mar e a montanha, entre o passado e o presente, que vai fazer você compreender que a Itália é muito mais exótica do que se vê em Roma, Veneza, Florença e Costa Amalfitana. É um país que carrega a modernidade em alguns setores, ao mesmo tempo que é marcado pelo forte trabalho artesanal na produção de alimentos, onde muitas vezes a tradição fala mais alto do que o desenvolvimento econômico. E a Calábria tem um pouco desses dois mundos.
Calábria
Não tem como falar da Calábria sem explicar que ela fez parte da Magna Grécia, nome dado ao sul da península da Itália (Calábria, Sicília, Apúlia, Basilicata e Campânia) no período entre VIII e VI a.C.. Foram anos de desenvolvimento intelectual e religioso, onde nomes importantes da filosofia, poesia e ciência se firmaram. Mais do que isso, a Magna Grécia, por ter um território extremamente fértil, fornecia alimentos importantes para os gregos, como cereais, óleos, vinhos, entre outros.
Ainda hoje é possível visitar ruínas gregas na região e se encantar com a antiga história vivida no passado. O Museu Nacional Arqueológico de Reggio Calábria, por exemplo, possui centenas de peças dessa época, incluindo os famosos Bronzes de Riace, duas estátuas gregas de bronze datadas de 460 a 430 a.C. que foram resgatas do fundo do mar no ano de 1972, e que se tornaram a maior atração do museu.
Por que visitar a Calábria?
Além de toda a história, belezas naturais, incluindo as praias mais lindas da Itália, na minha opinião, claro, a gastronomia da região é o que mais separa os calabreses do restante do país. Aqui se come com picância, e é o ardor do peperoncino (a nossa pimenta-caiena), que está presente nos molhos, nos embutidos, nas pizzas e até nos doces! Uma unanimidade entre os quase dois milhões de habitantes que vivem em terras calabresas.
Uma das iguarias mais típicas da região é a nduja, um salame cremoso super apimentado que leva uma quantidade altíssima de peperoncino, o que deixa a cor do embutido bem avermelhada. O preparo é usado em pães, pizzas, massas, e onde mais a criatividade do cozinheiro permitir.
Eu visitei uma fábrica de embutidos artesanais que produz a nduja e confesso que foi difícil fazer a degustação, já que a picância é realmente muito forte. No entanto, o restante dos produtos era excelente, e não tinha como ser diferente, afinal, a empresa ganhou alguns prêmios nacionais como os melhores salames da Itália em categorias diversas.
Vamos começar esse tour pelos sabores da Calábria conhecendo um pouquinho da história dessa empresa familiar?
Ioppolo Salumi Artigianali
Fui recebida pelo Enzo Ioppolo, terceira geração à frente da empresa. Ele contou que como não gostava de ir à escola, quando ele tinha 13 anos o pai entregou a chave do então açougue pra ele começar a trabalhar. E foi a partir dali que se apaixou pela produção de embutidos e nunca mais parou.
Mas a história da Ioppolo começou muitos anos antes, em 1940, com o avô Vincenzo. Nos anos 1970, os pais de Enzo, Francesco e Stella, abriram o primeiro açougue que, mais tarde, veio a ser o negócio que é hoje. Os pais passaram o empreendimento aos filhos Enzo e Renato, que se especializaram em carne suína e começaram a trabalhar com suas esposas, Antonietta e Manuela. A fábrica evoluiu, iniciou a fazer uso de novas tecnologias, mas sempre manteve a característica artesanal.
Desde então, os irmãos utilizam apenas matéria-prima calabresa simples e natural como o peperoncino. E a seleção dos suínos também é rigorosa: apenas animais nascidos e criados na Calábria, alimentados somente com cereais. Detalhes que fizeram a empresa se tornar reconhecida nacionalmente, com prêmios em produtos selecionados.
A Ioppolo Salumi Artigianali fica no município de San Giorgio Morgeto, na província de Reggio Calábria, onde outro empreendimento familiar produz azeite de oliva e fornece o produto para as receitas dos embutidos da Ioppolo.
Olearia San Giorgio
Assim como a Ioppolo, a Olearia San Giorgio é também uma empresa familiar. Suas atividades tiveram início com o avô Domenico Fazari nos anos 1940, mas foi somente em 1992 que o empreendimento nasceu. Atualmente, a fazenda agrícola e o lagar de azeite estão nas mãos da terceira geração da família.
A Olearia fabrica azeites extra virgens e virgens com diferentes variedades de oliveiras, sendo a queridinha dos proprietários a Ottobratico, que é nativa da Calábria. O azeite da Olearia San Giorgio feito com essa variedade é uma Fortaleza Slow Food, que é um projeto do movimento Slow Food que seleciona alimentos em risco de extinção visando preservá-los.
Com 25 mil oliveiras de seis variedades diversas, o negócio aposta em tecnologia aliada à sustentabilidade, trabalhando parte da produção de forma orgânica e a outra parte fazendo uso de insumos externos somente em caso de ataque excessivo de pestes.
Em visita ao olival da Olearia, foi mostrada uma árvore que tem uma média de 600 anos. Um exemplo vivo de como essa planta tão comum na Calábria pode sustentar muitas gerações da mesma família. Por isso que o slogan da empresa faz muito sentido: “Tornamos nobre um recurso milenar”.
Antes de seguir viagem, aproveite pra visitar a cidadezinha de San Giorgio Morgeto. Eu sugiro ir no fim de tarde, após visitar a Ioppolo e a Olearia, tomar um sorvete e subir até as ruínas do Castello Angioino Normanno para ver o esplêndido pôr do sol.
Turismo Gastronômico
Já deu pra perceber que a região da Calábria é um destino extremamente interessante para aqueles que gostam de turismo gastronômico, certo? Mas é importante salientar que esse tipo de turismo quando feito em locais de alta gastronomia como a França e outras localidades da própria Itália, geralmente incluem visitas a restaurantes renomados, tradicionais ou inovadores. Mas na Calábria é diferente. Aqui, a restauração não é o ponto forte. O melhor é visitar a produção agrícola de produtos típicos como o peperoncino, a cebola roxa de Tropea, o cedro, e o próprio azeite de oliva. Sem esquecer de passar em Pizzo, na província de Vibo Valentia, pra comer o tartufo, que é um sorvete com recheio líquido que tem Indicação Geográfica, o primeiro da Europa a ser reconhecido dessa forma.
Então, deixando os restaurantes de lado, vamos à próxima visita: a fábrica do licor calabrese mais famoso mundo afora, o Vecchio Amaro del Capo. É um digestivo à base de ervas produzido nas proximidades de Capo Vaticano, um destino de praia lindíssimo, que com certeza você tem que incluir na sua lista.
Caffo Antica Distilleria
Mais uma empresa familiar. Dessa vez, com proporções mundiais. Com uma produção média de 12 mil garrafas por hora, já dá pra imaginar que o negócio é industrializado e com equipamento ultramoderno. Mesmo mantendo peças antigas que eram utilizadas na produção para mostrar aos grupos de visitantes, a visita termina no envaze das garrafas, todo mecanizado.
A história da família Caffo começa na Sicília em 1865, onde já fazia grappa aos pés do vulcão Etna. Mas foi somente em 1915 que Giuseppe Caffo realizou o sonho de abrir uma destilaria. Pra facilitar a produção e a venda, seu filho Sebastiano veio para a Calábria, na região no entorno de Capo Vaticano, famosa na época pela produção de vinhos. A partir desse momento o negócio se transformou, até que o digestivo Vecchio Amaro del Capo foi criado, caindo no gosto da clientela. O nome Capo veio em homenagem à Capo Vaticano, local que encantou a família Caffo ao chegar em terras calabresas.
Hoje, a destilaria é administrada pelo filho de Sebastiano, Giuseppe, dos altos de seus 80 e poucos anos, e seu filho, que ganhou o nome do avô Sebastiano. Quadros com as imagens dos fundadores podem ser vistos durante o tour à fábrica, feito somente por meio de agendamento. Os 29 ingredientes entre ervas, raízes e outros insumos usados na receita também estão expostos e, pasme, tem até guaraná.
Ao final da visita, dá pra comprar os produtos na loja da fábrica, incluindo o lançamento do Vecchio Amaro del Capo na versão Red Hot que, claro, é feito com a adição de peperoncino. É picante, mas é bom! E tem uma dica: o Giuseppe, funcionário que me atendeu durante a visita, disse que o ideal é deixar o digestivo no congelador, pois além dele não congelar, a baixa temperatura ativa algumas propriedades da bebida, deixando os sabores mais evidentes. Testei e aprovei!
A Caffo é um dos extremos da Calábria, afinal, a grande maioria dos produtos típicos calabreses não são fabricados em plantas modernas como a da destilaria. Um exemplo disso são os pães e os doces, que geralmente são feitos manualmente de forma bem artesanal. Aqui abro um parênteses: os doces fazem parte da cultura calabresa. Eles realmente fazem doces bons. Para o café da manhã ou lanche da tarde sugiro experimentar a ciambella, um tipo de donut em formato de anel, e o bombolone, que parece um sonho recheado.
Quase no último dia da viagem, descobri que na cidadezinha de Canolo Nuova, em meio às montanhas do Parque Nacional de Aspromonte, é feito um pão que faz parte da Arca do Gosto do Slow Food. Não tinha como deixar essa vista de fora.
Panificio Pane, Amore e Fantasia
Você deve estar se perguntando o que um pão tem de tão especial pra me levar até lá. Até chegar, eu achava que era a farinha, oriunda da própria região. O cereal da farinha segale (também conhecida como jermano) usada no pão de Canolo Nuova deve passar por um processo de secagem ao sol antes de ir para o moinho, o que já era uma novidade pra mim. Mas quando cheguei, vi que a importância daquele pão era outra. Era a história de vida da padeira, Maria Stilo, uma das poucas (senão a única) a fazer o pão jermano.
Uma história emocionante, que passa por necessidade financeira, problema de saúde e dificuldade de sucessão.
Para chegar até a padaria, é preciso atravessar uma parte do Parque Nacional de Aspromonte, onde árvores enormes dos dois lados da rodovia fazem sombra durante boa parte do percurso. Um panorama relaxante e contemplativo, que te leva para a outra face da Calábria, onde o verde ajuda a baixar a temperatura e deixar o ar mais puro.
Cheguei e já bati o olho no balcão: recheado de pães, biscoitos, salgados e pizza em metro, percebi que ali a panificação era coisa séria. Tudo feito pela Maria, sem a ajuda de nenhum funcionário. Enquanto ela corria da cozinha para o balcão, onde o filho ajudava com a clientela que não parava de entrar, me contava sua história de vida.
Quando Maria tinha 10 anos, o pai faleceu deixando a mãe com quatro filhos pequenos. Ela e a irmã começaram a ajudar a mãe a fazer pão pra vender. E assim ela entrou no ramo da panificação. Um caminho sem volta, pois passou a fazer o pão jermano, que era tradição na cidade. O pão foi ganhando fama, assim como sua padaria.
Maria saiu em reportagem em jornal, revista, passou a fazer o envio semanal do pão a uma atriz italiana, e foi homenageada, entregando pessoalmente o pão jermano feito por ela para o Príncipe de Mônaco. Uma honra para alguém que tem dedicado toda a vida a essa tradição. Na parede da padaria tem a foto que comprova essa história: ela e o príncipe com os pães que ela fez exclusivamente para ele.
Mas foi-se o tempo que Maria fazia foto (por isso vou respeitar a vontade dela de não aparecer). Um problema de saúde paralisou parte do seu rosto e ela nunca mais pôde sorrir. Porém, para uma mulher que teve que trabalhar ainda criança pra não passar fome, sempre existe uma solução. Ela criou pãezinhos com rostos sorridentes, levando a seus clientes o sorriso que não pode dar.
Um gesto carinhoso que nem de longe expressa sua preocupação com o futuro da padaria. Sua filha não quer trabalhar como padeira, e seu filho faz quase tudo dentro do negócio, menos panificar. A pergunta veio instantaneamente à minha cabeça: até quando Maria vai conseguir fazer o pão jermano? Até quando esse pão cheio de história vai sobreviver?
Isso somente o futuro dirá, mas uma coisa é certa: na Calábria, muitas Marias levam adiante tradições gastronômicas que correm o risco de desaparecer. Elas vivem pra defender o que é do seu território, seja sua família, pedaço de terra ou apenas um pão.
Esse é o sabor da Calábria que quero deixar pra você.
Por Leyla Spada