Correria. Gritaria. Luta contra o relógio. É nesse ambiente que uma cozinheira prepara um prato num restaurante renomado. De repente sente uma paulada: uma colher acerta o seu peito. Olha para o chef da cozinha – um rockstar da gastronomia local. Ele está irritado com alguma coisa e, não bastasse ter arremessado um objeto na funcionária, segue destilando poder.
Esse pequeno conto é ficcional. Mas também não é. Cenas parecidas com esta não são exatamente incomuns em cozinhas do Brasil. Com mais ou menos violência (chegando até à sexual), o que acontece com algumas mulheres empregadas em cozinhas profissionais fica invisível quando o cliente recebe o prato montado na mesa ao som de uma música ambiente.
A pressão das cozinhas é uma realidade para todos, sim, mas toma uma proporção maior diante das trabalhadoras, unindo o estresse ao machismo.
O patriarcado em sua forma pura
“Não existe só violência física, mas também a violência verbal, o achar que você não é capaz. As palavras são muito duras, principalmente vindo de chefs homens. Quando você está num cargo mais baixo, que não tem o poder de decisão, acaba aceitando, se oprimindo, omitindo uma situação para permanecer no emprego.”
Essa fala é da chef Maria do Nascimento Garcia, de 42 anos. Até chegar à chefia executiva de um grande restaurante de Florianópolis, trabalhou como cozinheira por muitos anos. Vivenciou e testemunhou muitas situações que hoje, como líder, tenta mudar.
Em uma pesquisa encomendada pela marca Stella Artois e realizada pelo Instituto Ipsos, em 2022, 36% das chefs de cozinha entrevistadas disseram já ter sofrido assédio moral ou sexual. A mesma porcentagem disse ter tido sua capacidade questionada só por serem mulheres.
Maria já passou por isso: “Uma vez eu tive que demitir um sushiman porque ele não me respeitava. Ele me disse que nunca viu mulher chef de cozinha japonesa, que aquilo não existia. Um desrespeito à hierarquia.”
A cozinheira Thaís Gonçalves, de 23 anos, vê um longo caminho pela frente pela igualdade de gênero na cozinha: “Às vezes é difícil mostrar nossa credibilidade, nosso talento. A gente precisa passar por cima de muita coisa, comentários, desconfianças”. Depois de cinco anos trabalhando em outros restaurantes, hoje faz parte da equipe de Maria e diz se sentir inspirada.
“Queria muito passar por essa experiência (de ser liderada por uma mulher). Estando ao lado de mulheres que nos inspiram, como a chef Maria. A gente consegue chegar mais longe”, diz Thaís, sabendo que os obstáculos são enormes: “As grandes lideranças e os grandes reconhecimentos ainda são para os homens.”
O paradoxo da cozinha
A cozinha doméstica sempre foi usada como símbolo machista para subjugar mulheres. Mas quando o assunto é cozinha profissional, são os homens que ocupam a maioria esmagadora dos espaços. Principalmente os cargos de poder. Homens que, muitas vezes, aprenderam a cozinhar em casa com a mãe, a avó, a tia…
Segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), 96% das cozinhas domésticas brasileiras ainda são lideradas por mulheres. Enquanto isso, apenas 7% das cozinhas profissionais possuem mulheres no comando (pesquisa Chef’s Pencil). Os maiores louros também vão para eles: no mundo todo, as chefs possuem apenas 5% das estrelas Michelin (2018), uma das classificações mais importantes da gastronomia.
Lugar de mulher também é na… chefia da cozinha
“O lugar da mulher é onde ela quiser estar. A gente tem que estar onde a gente deseja. Na gastronomia não é diferente. A gente tem que se fortalecer na cena como mulheres, nos divulgar, nos encorajar”, afirma a chef Janete Borges.
Fortalecimento mútuo é fator importantíssimo na luta por mais espaço. Mas não só. É preciso mais e mais aliados. Há muito tempo o feminismo deixou de ser conversa só de mulheres – afinal, a busca por um mundo mais justo é, ou deveria ser, preocupação de todo mundo.
Para promover a mudança, o apoio de chefs e cozinheiros homens também é importante. Homens que, assim como as mulheres, também sonham um mundo (e uma gastronomia) com diversidade e equidade. É isso que move o professor pesquisador Gustavo Guterman. Ele dá aulas de Gastronomia do Instituto Federal Fluminense Campus Cabo Frio, rumo profissional que tomou depois de anos convivendo como chef em restaurantes.
“Os homens são balizados por uma estrutura machista que ainda coloca a mulher como subalterna. Quando virei professor, eu queria ser agente dessa mudança. Tento fazer de meus alunos ativistas da profissão”, diz Gustavo.
Outro ponto de apoio pode estar dentro de casa: os companheiros de vida que não apenas abraçam e respeitam as escolhas profissionais das mulheres, como são também o suporte familiar. Como o marido da chef Maria, com quem ela tem duas filhas de 6 e 3 anos. “Muitas mulheres desistem porque não têm tempo para se dedicar à cozinha por causa dos filhos. Cozinha é doação, muito tempo fora de casa. Sem o apoio do meu parceiro, inclusive apoio mental, eu não conseguiria.”
Assim como o professor Gustavo, Maria também dedica tempo a ensinar: é professora de Gastronomia no Senac. Uma forma de plantar sementes de humanidade e respeito nos novos e novas profissionais que chegam nas cozinhas brasileiras.
“Existe o líder que te ensina, que te faz acompanhar. E existe o líder que te impõe e te obriga a acompanhar. Acho que as mulheres têm ido mais pelo caminho do líder que ensina, porque elas querem muito estar ali naquele lugar. E vão estar cada vez mais”, completa a chef.