Acordo e preparo o café da manhã já pensando no que vou fazer para o almoço (se tiver qualquer tipo de carne, o pensamento já foi feito na noite anterior), e se faço a mais para sobrar para o jantar, ou se invento algo também para o fim do dia. Caso não sobre e esteja sem vontade de cozinhar, posso pedir aquele delivery de pizza da última vez que chegou como se tivesse saído do forno a lenha naquele instante.
A rotina descrita acima virou a de muitas pessoas durante a quarentena do novo coronavírus. O que antes era resolvido com uma simples parada em um restaurante, tornou-se um pensamento constante para manter a família alimentada durante esse período de reclusão.
Essa mudança forçada de comportamento e estilo de vida está alterando nossa relação com tudo e, obviamente, com a comida, essencial para a nossa sobrevivência e vida social, não é diferente. Não é fácil entender até que ponto essas modificações impostas pelo isolamento social vão virar nossa nova rotina, e por isso o Comida com História trouxe a trend analyst Fah Maioli, que mora em Milão e analisa tendências que influenciam o Design, a Moda e a Gastronomia, para explicar se o que já mudou no nosso dia a dia com a pandemia pode virar tendência.
Fah utiliza a ferramenta de pesquisa e análise de tendências Coolhunting, onde ‘tendências’ são fenômenos sócio culturais em evolução. “Analisamos fenômenos de comportamento individuais e coletivos que, sedimentados no dia a dia, mudam paradigmas de pensamento e atuação no mundo”, explica.
Geralmente, as mudanças comportamentais seguem uma linearidade do tempo com sinais que as anunciam, o oposto do que ocorreu com o coronavírus, que surgiu sem um pré-aviso. Esse elemento surpresa, chamado de ‘acelerador do tempo’ por sociólogos e filósofos italianos, está mudando muitos paradigmas e acelerando fenômenos sócio culturais.
Segundo Fah, a linearidade natural do consumismo, iniciado na década de 70, é o neoliberalismo (basicamente um mercado sem regulamentação à mercê das forças da demanda e da oferta) que surgiu do boom econômico do pós guerra. Na Itália, ele erradicou dialetos, unificando a língua, uniformizando hábitos, costumes e tradições, dando origem à globalização. Essa, em apenas dois meses de lockdown pelo coronavírus, está sendo colocada por terra.
“Podemos afirmar com absoluta certeza que alguns comportamentos individuais de agora já estão criando ações na vida concreta que vão determinar as mudanças sociais, vão durar e mudar a vida como a conhecemos hoje. Mesmo ainda no olho do furacão, podemos já perceber que as ondas da gloCalização (local) estão chegando para reconquistar todos os setores, gastronomia inclusa”, completa Fah.
“O coronavírus elimina excessos, dando força total ao essencial.”
São três as razões que explicam a revolução que estamos passando: em tempos de emergência as pessoas se refugiam nos estados-nação, que têm as forças financeiras, organizacionais e emocionais que as instituições globais carecem; o vírus está revelando a fragilidade da cadeia de suprimentos global; a pandemia está revigorando as tendências políticas que foram fortes mesmo antes do início da crise, em particular as demandas por maior protecionismo, localização da produção e controles mais rigorosos nas fronteiras, nacionalismo ou anti-globalismo.
Pedimos para a Fah falar sobre dois aspectos importantes do segmento comida, sendo o primeiro as mudanças mais significativas no ramo da alimentação que já estão ocorrendo dentro das casas para atender essa nova ordem de recolhimento, e o segundo, o futuro dos restaurantes focados em experiências sensoriais presenciais.
Abaixo, sua análise.
Casas
Na casa, o isolamento forçado gerou uma espécie de hiperatividade doméstica, junto de rituais coletivos para compensar o isolamento forçado, e um líder renasceu no ambiente doméstico: as mulheres reassumiram o comando da família. Isso é maravilhoso em tempos de discussão de empoderamento feminino.
Na vida prática, para reduzir as saídas, as entregas domiciliares aumentaram exponencialmente, e agora a horta do agricultor chega em casa para evitar as longas e perigosas filas em frente a lojas e supermercados, garantindo alimentos de qualidade a zero quilômetro.
Muitos italianos estão redescobrindo os produtos mais simples e naturais – o orgânico cresceu 76% nas despesas nacionais – e mudaram seus hábitos alimentares, também graças ao maior tempo disponível que deve ser gasto em casa. Então, em vez de lanches embalados, ricos em cremes e recheios com muitas gorduras, voltamos para os biscoitos da avó, pão e geleia, tortas, bolos caseiros.
Mas nem tudo é ouro: as vendas online de alimentos gourmet, após um aumento nas transações (+ 20%) no início de março, tiveram um declínio semelhante, sinal de que os italianos estão se tornando mais cautelosos e estão começando entender as consequências econômicas.
A farinha tornou-se novamente um porto seguro muito procurado – aumento de 80% no consumo, deixando-a 6% mais cara pelo mundo -, e voltamos a fazer pizza e pão em casa. Além disso, está sendo uma oportunidade para acostumar as crianças a não tomar colas e sucos industriais, menos saudáveis e ricos em vitaminas do que um bom suco natural ou batidas, que estão fazendo o maior sucesso pelo Instagram. As farinhas mais procuradas, inclusive, são os grãos históricos italianos, e a falta do fermento está deixando que as receitas das avós, aquelas com fermentação longa, retornem.
Voltamos a colocar as mãos na massa, preparando almoços e jantares. Certamente, o bolo da vovó tem um sabor completamente diferente – além de mais saudável – do que o industrial. Não é retórica.
E nosso corpo não poderia ser o único a se beneficiar com uma dieta caseira: cozinhar junto com os entes queridos pode revelar-se não apenas uma atividade lúdica, mas também um entretenimento para os relacionamentos na própria esfera familiar. Em suma, uma cura psicofísica.
Em resumo, depois desta grande surpresa, tenho certeza que passaremos, ao menos nos países ocidentais de democracias orientadas ao bem estar, do consumo global ao local, do desperdício de alimentos ao alimento necessário, das ‘nouvelle cuisine’ ao antigo sabor da cozinha da vovó.
De forma geral, no setor de alimentação teremos a reestruturação de processos logísticos (a partir da entrega) e distanciamento social nos restaurantes e bares. Aqui, os pontos cruciais serão uma demanda focada em bens ‘essenciais’, com menos espaço, no curto prazo, para inovação e lançamento de novos produtos; uma cadeia de suprimentos mais resiliente, menos “chinesa” e mais local; estratégias diversificadas de promoção (com mudança digital) e aceleração ainda maior no online, foco delivery.
Restaurantes
Acredito que a partir desta crise, muitos restaurantes requintados provavelmente desaparecerão, mais por causa dos custos excessivos do que pela alta qualidade da culinária, que não tinha um mercado real local, era povoada pelo turismo. Assim como muitos que anunciavam oferecer uma cozinha tradicional que de tradicional tinham muito pouco, desaparecerão.
O delivery terá um desenvolvimento importante: se o crescimento do setor for de 5-7% ao ano, provavelmente chegará a 20-25% (dados italianos). E, então, eu também imagino um aumento nas dark kitchens, aquelas cozinhas abertas apenas para entrega em domicílio.
Todos dizem que quando essa emergência terminar vai existir um maior desejo pela cozinha tradicional do que pela alta cozinha, mas pode ser que ambas as cozinhas continuarão a existir, desde que tenham algo interessante para contar.
No entanto, acho que isso mudará a abordagem do cliente que, nesses meses de quarentena, redescobriu o prazer de compartilhar a mesa em casa, de cozinhar com os seus queridos, e essa sensação ele vai querer sentir no restaurante. Nele, mais humanidade e menos rigor profissional serão um trunfo.
O cliente se tornará mais exigente, porque ir a um restaurante será um desejo de viver uma experiência completa. Seremos chamados a redescobrir os sabores históricos que acompanharam o desenvolvimento da comida, em um trabalho de pesquisa de sabor. Você não vai parar de comer fora, e talvez escolha um restaurante gourmet para viver uma experiência. Isso porque vai existir mais consciência de como você deseja gastar seu dinheiro.
A maioria dos restaurantes opera com margens muito estreitas, e aqui grandes grupos serão os vencedores desta crise. Eles têm dinheiro e receberão tudo pela metade do preço. Isso é um pouco desencorajador, mas os pequenos e médios que ainda tiverem fôlego deverão insistir no novo consumo sustentável. Esse vai ser o segredo.
Enquanto isso, os espaços físicos dos restaurantes terão que ser revistos, repensando-os de acordo com as regras do distanciamento social.
Provavelmente, os restaurantes irão oferecer menus muito mais curtos e com maior valor agregado, por razões de fornecimento, porque nem todos os produtos estarão disponíveis como antes. O cliente será mais sensível ao preço e vai concentrar a atenção em alimentos saudáveis e no Km 0, já que a saúde se tornou uma prioridade mesmo para os consumidores menos influenciados. No final, mais do que um cardápio, vai ganhar o restaurador contemporâneo, que poderá se adaptar melhor às novas necessidades dos clientes.
Para o mundo alimentício, um portfólio mais amplo de fornecedores deve ser construído para minimizar riscos, esperando um aumento nos custos. Nesse contexto, a proximidade física pode fazer a diferença: não apenas para lojas de bairro, mas também para redes ou grandes grupos. O marketing se torna local, focado na comunidade!
Devemos aproveitar esta oportunidade para melhorar as coisas no setor da restauração, aqui na Itália e aí no Brasil. O preço dos alimentos aumentará no futuro, mas devemos apoiar os agricultores e produtores locais. As pessoas vão ter menos dinheiro, e vai ser necessário consumir de maneira diferente. Pode ser necessário comprar menos roupas ou não atualizar para o novo iPhone. Aqui um iPhone custa uns cinco meses de alimentos orgânicos que compro em Cortinai (comércio online de alimentos orgânicos italianos), por exemplo. Prevendo um retorno real à sazonalidade, ao produto local, para apoiar os pequenos agricultores, que devemos tentar trazer ao mundo dos grandes varejistas.