Entre 60% e 75% da população mundial sofre com algum tipo de desconforto ao ingerir leite ou derivados, mas apenas uma pequena parcela é diagnosticada com intolerância à lactose. A retirada total do leite e produtos lácteos da alimentação ou a ingestão da enzima lactase sem a prescrição de um especialista podem não ser a melhor solução para a sua saúde, e se o problema for a alergia à proteína do leite, o quadro poder ser até fatal. Por isso, o Comida com História conversou com Dr. Henrique Perobelli, gastroenterologista da Rede de Hospitais São Camilo de São Paulo, sobre a diferença entre a intolerância à lactose e a alergia à proteína do leite, e como é importante um diagnóstico médico para saber como proceder com sua dieta.
1. Qual a diferença entre a intolerância à lactose e a alergia à proteína do leite?
R. A intolerância à lactose (IL) é decorrente da dificuldade do organismo em digerir a lactose (que nada mais é do que uma espécie de açúcar do leite) devido à diminuição ou ausência de lactase, enzima que digere a lactose. A alergia à proteína do leite de vaca (APLV) é uma reação do sistema de defesa do organismo às proteínas do leite (caseína, alfa-lactoalbumina, beta-lactoglobulina).
2. Os sintomas dos dois problemas são parecidos? Quais são os sintomas?
R. Os sintomas são semelhantes, porém ocorrem em faixas etárias distintas. A APLV ocorre em recém- nascidos e a intolerância à lactose em adultos e idosos. Sintomas de cólicas, dores abdominais, diarreia e distensão abdominal são comuns em ambos os casos. Por tratar-se de uma alergia, no caso da APLV, outros sintomas como lesões na pele (urticária, dermatite atópica de moderada a grave), respiratórios (asma, chiado no peito e rinite), reação anafilática, baixo ganho de peso e crescimento podem aparecer.
3. É possível saber o que provocou o problema na pessoa afetada?
R. A expressão da enzima lactase atinge seu pico na infância e se reduz ao longo do anos, quase se esgotando na fase adulta. A principal causa de má-absorção de lactose em adolescentes e adultos é a não persistência primária (genética) da enzima lactase (denominada má-absorção primária de lactose).
Na APLV, por tratar-se de uma alergia alimentar, pode ocorrer de duas formas: IgE mediadas e não IgE mediadas. Na doença IgE mediada, o organismo produz anticorpos específicos do tipo IgE (Imunoglubulinas E) para as proteínas do leite de vaca às quais a criança é alérgica (caseína, alfa-lactoalbumina e beta-lactoglobulina). São reações tipicamente mais persistentes com o passar dos anos e geralmente mais graves. Na doença não IgE mediada, a reação é desencadeada por outras células. O grande diferencial deste tipo de reação clínica é que os sintomas são tardios, podendo aparecer horas ou dias após a ingestão do leite.
4. Tanto a intolerância quanto a alergia podem ser consideradas doenças?
R. Na verdade não. A intolerância à lactose é uma má absorção do açúcar do leite em pacientes predispostos, ou seja, uma dificuldade em digerir uma molécula do leite. A APLV é uma alergia a alguma proteína específica presente no leite de vaca.
5. Como descobrir que se sofre de uma delas?
R. Sendo um bebê recém-nascido, um alergologista ou um gastroenterologista pediátrico seria o profissional mais indicado para fazer uma investigação. No caso de adultos com sintomas intestinais, um gastroenterologista poderia auxiliar melhor e ajudar no diagnóstico. No caso de intolerância à lactose, exames sorológicos que dosam o nível de glicose após estimulação com alta ingestão de glicose diagnosticam o problema. Já a APLV necessita de testes específicos com anticorpos no sangue e testes cutâneos de hipersensibilidade.
6. Existe um tratamento efetivo para cada uma delas? Se sim, qual?
R. No caso da IL deve-se desaconselhar a ingestão de leite e seus derivados. No entanto, a maior parte dos pacientes com intolerância à lactose tolera consumo de até 250 ml de leite de vaca ou equivalente (12 g de lactose) ao dia. Pode ser realizada suplementação de prebiótico à base de galacto-oligossacarídeos (GOS), o qual aumenta a flora de uma bactéria chamada Bifidobacterium, capaz de auxiliar a digestão da lactose. A suplementação de lactase nas refeições com lactose também deve ser instituída com o objetivo de reduzir sintomas.
O tratamento da alergia à proteína do leite deve ser feito com a utilização de fórmulas alimentares com proteína extensamente hidrolisada ou com fórmulas de aminoácido. No caso de APLV na vigência de aleitamento natural exclusivo, a mãe deve deixar de consumir leite de vaca e derivados. Existe terapia imunológica onde se oferta quantidades ínfimas da proteína para estimular a dessensibilização do paciente à proteína específica.
7. Qualquer tipo de leite (vaca, cabra, búfala, ovelha) e seus derivados afetam da mesma forma as pessoas que sofrem com a intolerância e com a alergia?
R. Afetam da mesma forma, pois o problema está na lactose e na proteína do leite – caseína, alfa-lactoalbumina e beta-lactoglobulina -, que causam os sintomas na intolerância à lactose e na alergia à proteína do leite.
8. Entre retirar totalmente o leite e seus derivados da dieta, utilizar a enzima lactase para poder consumir produtos lácteos, ingerir alimentos zero lactose e consumir lácteos de forma reduzida, o que é o ideal?
R. Não existe o ideal, pois os sintomas dependem de cada paciente. Existem graus diferentes de má-absorção, a depender da quantidade de lactase que cada um ainda produz. Um nutricionista deve ser consultado após o diagnóstico médico para auxiliar o paciente em uma dieta específica para seus sintomas.
9. Existem outros fatores que podem influenciar no quadro do paciente?
R. Outras doenças gastrointestinais podem dificultar a degradação da lactose: doença celíaca, supercrescimento bacteriano do intestino delgado, gastroenterites, esclerose sistêmica e aumento da velocidade de trânsito intestinal. Esses pacientes são potencialmente capazes de digerir a lactose quando resolvida a causa base. Além disso, existem pacientes que ainda mantém uma produção basal de enzima lactase ao longo da vida e ainda assim possuirão sintomas mais brandos da doença.
10. Como é feito o suplemento de cálcio por esses pacientes?
R. Nesses pacientes deve-se aumentar a ingestão de vegetais e legumes como brócolis, espinafre, couve e agrião, frutas, peixes e fibras. Os exercícios mais indicados são os aeróbicos e hipertróficos, para aumentar a massa magra, assim como tomar sol pode elevar o nível de vitamina D e potencializar a captação de cálcio pelos ossos. Se a ingestão de vitamina D e cálcio pela dieta não for suficiente, pode ser necessária a suplementação com polivitamínicos específicos.
11. Os queijos curados podem ser consumidos pelo intolerante à lactose?
R. Estes queijos tem baixíssima presença de lactose, pois o processo de cura praticamente consome todo o açúcar do leite. Seriam os mais indicados para os leves de IL. Ao contrário, queijos brancos têm as maiores quantidades de lactose, inclusive no soro presente na própria embalagem.
12. Aquele que tem alergia à proteína do leite resta comer queijos veganos ou há outros tipos à disposição?
R. Sim, queijos lácteos não são indicados para quem tem APLV. A atenção precisa ser redobrada a diversos alimentos, pois existem fontes escondidas de ingredientes lácteos ou a possibilidade de contaminação cruzada. Estes alimentos podem conter traços de leite ou derivados, e causar até choque anafilático em paciente com APLV IgE mediados. Alimentos como chocolate, caramelo, pipoca sabor manteiga, alimentos com corantes e saborizantes podem conter traço de lactose e devem ser evitados.
Existe hoje à disposição uma gama de leites e queijos vegetais, assim como geleias, óleos e pastas que não contém traços de leite e podem ser usados, de forma segura, em substituição à manteiga e leites tradicionais. Uma nutróloga ou nutricionista especializada na área pode fornecer dicas para se ter um alimentação saudável, menos restritiva e saborosa.