Terra é onde vivemos, onde criamos nossos filhos, onde construímos nossa história. Terra também é onde plantamos ou criamos toda comida que vai parar na nossa mesa. Mas atualmente terra é ainda mais do que isso…
“Terra é a linha definitiva que divide as pessoas que têm das pessoas que não têm”.
A frase de Ruth Hall, professora sul-africana e especialista em reforma agrária e redistribuição de terras, é o depoimento de alguém que sabe bem do que está falando. Reforma agrária ainda hoje é um tema sensível na África do Sul, onde os quase 50 anos de apartheid provocaram uma imensa concentração de terras nas mãos da minoria branca sul-africana. E mesmo 30 anos depois (o apartheid durou oficialmente até 1994), essa desigualdade ainda permanece difícil de ser superada. Uma realidade que se repete nos quatro cantos do planeta, onde países também sofrem os prejuízos dessa desigualdade provocada por quem tem terra e quem não tem. Entre quem tem onde viver, plantar, criar seus filhos, e quem não tem.
Boa parte das belas histórias que trazemos aqui no Comida com História só se tornam possíveis por causa dela: a terra. Sem terra não haveria produtores artesanais de alimentos. Mesmo assim, falar em reforma agrária significa quase sempre acender um fósforo próximo a um barril de pólvoras. “Acho que existe muita raiva e muita incompreensão em nossa sociedade hoje quando falamos em reforma agrária. É um assunto que sempre causa muita divisão”, lamenta Ruth Hall.
Difícil saber o motivo, afinal, a distribuição democrática de terras está na raiz do desenvolvimento de nações que hoje são consideradas exemplos de modernidade. Japão e Coreia do Sul são alguns exemplos de países desenvolvidos que colocaram em prática políticas de reforma agrária até hoje vistas como modelos por especialistas do setor. No Japão, a aplicação de políticas de reforma agrária na virada do século 19 para o século 20 ajudou a deixar o modelo feudal para trás, construindo os alicerces do que viria a ser um dos países mais modernos do mundo. Algumas décadas depois, a vizinha Coreia do Sul seguiu pelo mesmo caminho também com resultados muito positivos.
Quem vê hoje imagens da ultramoderna sociedade sul-coreana talvez nem imagine, mas as sementes de todo esse desenvolvimento foram plantadas cerca de 80 anos atrás através de uma política radical de reforma agrária. Essa distribuição de terra começou timidamente logo após a Segunda Guerra Mundial, atingindo primeiro apenas as terras que, antes da guerra, pertenciam aos japoneses. Mas a partir do final dos anos 40 e início dos anos 50 essa reforma agrária avançou, afetando também os grandes e médios proprietários rurais de origem coreana. Foi uma reforma agrária tão profunda que, quando o processo de redistribuição terminou, praticamente não existiam mais grandes latifundiários na Coreia do Sul.
O historiador Alexandre Black de Albuquerque, da Universidade Federal de Pernambuco, pesquisou os impactos que a reforma agrária provocou na sociedade e na economia coreanas. Ele não tem dúvidas sobre a importância da distribuição de terras para o desenvolvimento do país asiático: “a reforma agrária na Coreia do Sul promoveu maior igualdade de renda, maior segurança jurídica aos antigos arrendatários e aumentou a produtividade do solo, com efeitos positivos na segurança alimentar de toda a nação.” E todos se beneficiaram porque a reforma agrária implementada na Coreia do Sul previu que quem recebesse a terra pagaria, durante certo período, valores ao governo. E o governo repassaria esses valores aos antigos proprietários.
Se a reforma agrária funcionou para eles, por que não poderia funcionar pra nós? De acordo com um estudo divulgado em 2019 pela OXFAM (uma confederação internacional que luta contra a pobreza e a desigualdade em mais de 90 países), o Brasil tem hoje uma das maiores concentrações de terras do mundo. Menos de 1% da população brasileira é dona de quase metade (45%) de toda a área rural brasileira. “Precisamos reconhecer esse abismo social histórico e colocar em prática uma reforma capaz de garantir um acesso mais democrático à terra”, afirmou, na ocasião, Kátia Maia, diretora executiva da Oxfam Brasil.
O problema é que de lá pra cá pouca coisa mudou. Aliás, quando o assunto é distribuição democrática de terras, em toda a história brasileira pouca coisa mudou. Por isso movimentos sociais seguem mobilizados em todo o país na defesa de algo que tantos outros países do mundo já fizeram e que, comprovadamente, ajudou muito nos seus desenvolvimentos. Aqui no Brasil a luta pela Reforma Agrária ganhou até uma data: 17 de abril. Esse dia foi escolhido como uma homenagem às vítimas do crime que ficou internacionalmente conhecido como Massacre de Eldorado de Carajás, quando 19 trabalhadores e trabalhadoras rurais foram assassinados e dezenas ficaram feridos em 1996.
Mas mais do que homenagear o passado, a luta pela reforma agrária tem como objetivo construir um futuro melhor para todos – tanto para quem vive no campo quanto quem vive na cidade. Essa semana o governo federal aproveitou a data para anunciar um novo projeto prometendo assentar 295 mil famílias até 2026. Mas ainda que essa promessa seja cumprida, as experiências internacionais ensinam que redistribuir terras de forma democrática e justa é apenas o primeiro passo de uma longa caminhada. Na Coreia do Sul, por exemplo, a reforma agrária não se restringiu a isso. Seguindo a redistribuição de terras, houve também um forte investimento do governo sul-coreano na melhoria das condições de plantio para expandir a produtividade mesmo nas pequenas propriedades.
Além disso, o governo passou também a estimular a sinergia entre o setor industrial que vinha se desenvolvendo e o setor agrícola. Dessa forma, a reforma agrária acabou se tornando também combustível para a industrialização da Coreia do Sul. Como conta Alexandre Black, “essa política de desenvolvimento do setor rural permitiu a diminuição das diferenças de renda entre as zonas rurais e urbanas. Assim, a reforma agrária teve papel importante no desenvolvimento econômico e social que transformou a Coreia do Sul num dos mais importantes países, produtor de bens tecnológicos de alto valor agregado com bons indicadores sociais.”
Mas para plantarmos essa semente também aqui no Brasil é necessário antes de mais nada deixarmos de lado todo receio que a simples menção do termo “reforma agrária” muitas vezes provoca. Afinal, estamos apenas falando de uma política que busca democratizar o acesso a algo que temos muito, mas que hoje segue nas mãos de poucos: nossa terra.
“Se começarmos a falar sobre isso e se deixarmos de nos assustar com a ideia de redistribuição de terras, poderemos pensar em construir um futuro que não esteja preso ao passado.” (Ruth Hall)
Pode ser esse o legado que deixaremos para o futuro do nosso país.