Assim como a única bebida que pode ser chamada de champanhe é a produzida na região de Champagne, na França, o único queijo artesanal serrano é o que vem dos Campos de Cima da Serra de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul.
Mais do que meras opiniões, as duas afirmações acima são leis. Além do champanhe, outros vinhos famosos como Porto, Bordeaux e Chianti preservam suas reputações com denominações de origem, que são regras específicas quanto à limitação geográfica e o “savoir-faire” – know-how, ou saber-fazer em francês.
O mesmo acontece com os queijos. E o primeiro do Brasil a obter uma Indicação Geográfica por Denominação de Origem é o queijo artesanal serrano do sul do país, que conquistou o selo “Campos de Cima da Serra”, concedido pelo Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) em março de 2020.
Queijo DOC
Isso quer dizer que somente 18 municípios de Santa Catarina e 16 do Rio Grande do Sul podem produzir o legítimo queijo artesanal serrano. Embora muitos usem a abreviação QAS, limitá-lo a uma sigla chega a ser injusto com a complexidade desta iguaria tão rústica e autêntica, de história singular e secular.
Para entender por que esses queijos de textura amanteigada e sabor acentuado mereceram esta grife, o Comida com História falou com dois produtores da serra catarinense que preservam a tradição queijeira há gerações em suas famílias.
Air Zanelato, do Sítio Santo Antônio, em Bom Retiro (SC), produz queijo desde 2006 junto com a mulher, Jacinta. Ele conta que usa a mesma receita que seus antepassados criaram no século 18, durante a colonização da região pelos imigrantes açorianos.
Vacas que produzem o queijo artesanal serrano no Sitio Santo Antônio
Receita de quase 300 anos
“Esse povo, quando chegou aqui na serra, encontrou todo tipo de dificuldades: altitude, frio intenso, isolamento, guerras com os bugres… Mas esse ambiente hostil se tornou generoso. Eles domesticaram o gado, hoje da raça Franqueira Crioula Lageana. É aquele gado com grandes chifres, que fugiu das missões jesuítas no sul, se embrenhou no mato e se tornou o ‘chimarrão’, tornando-se selvagem. E esses açorianos começaram a fazer o queijo com a receita que trouxeram da terra natal. Esse queijo era para comer no inverno, quando eles tinham muita carência de proteína animal. Eles faziam no verão, quando havia abundância. É uma história de sobrevivência”.
“Já para o final do século 18, chegaram ao planalto serrano catarinense as tropas do bandeirante Antônio Correia Pinto de Macedo. Esse pessoal era do norte de Portugal, da Serra da Estrela. Eles reforçaram os açorianos e criaram a cidade de Lages, quebrando o isolamento. E também trouxeram o saber-fazer do queijo de ovelha português, adaptaram e começaram a trabalhar com o leite do gado Franqueiro Lageano. Então o queijo artesanal serrano é de origem portuguesa e açoriana. E nós estamos na 13ª geração desses antecessores, fazendo a mesma receita. A única coisa que mudou foi o coalho, que não é mais da coalheira do estômago do animal. Agora, é coalho industrial. O resto é a mesma coisa. E a cura continua sendo, também, na tábua de araucária”.
Pilares da receita
A receita que define o saber-fazer do queijo artesanal serrano, como explicou Air Zanelato, sustenta-se nos seguintes pilares: gado de corte (não vale usar gado leiteiro) alimentado com pastagem natural, leite cru recém-ordenhado e maturação na tábua de araucária. “E sem interferência nenhuma no processo de cura. É o que a natureza dá. Não tem controle nem de temperatura e nem de umidade”.
André Rissi está à frente da Queijaria Tio Tácio, que fica nos arredores de São Joaquim. No sítio do falecido avô, que passou a tradição do queijo para os herdeiros: eles também produzem maçã, e a queijaria é apenas uma das fontes de renda da família.
Produção familiar
O pai, Anastácio, cuida do gado e comanda a produção de leite. A mãe, Neiva, é a responsável por fazer o queijo. André fica com a parte de vendas, dividindo-se com a rotina de trabalho em uma cooperativa de crédito. Por tudo isso, e por se tratar de uma empresa essencialmente familiar, ele ainda não pensa em aproveitar a nova Denominação de Origem para dar um salto na produção.
“O queijo não é a nossa única renda, mas é importante, porque praticamente todo dia tá entrando recurso. Tem produtor que depende só do queijo. É uma renda bem boa. Mas não pensamos em ampliar, porque não é uma coisa tão fácil, dá um trabalhinho. Agora teve período de seca, tem que cuidar do pasto, é complicado, o inverno é rigoroso… O que a gente produz hoje conseguimos vender tranquilamente, e se a gente dobrasse a produção, teria mercado. Mas não é só a questão da comercialização, tem a questão de dar conta e manter a qualidade”.
“Vai melhorar para nós”
“A questão da identificação vai melhorar porque, hoje, o pessoal lá do litoral compra leite aqui da serra e vende como queijo serrano. E isso vai barrá-los, porque a identificação geográfica diz que o queijo serrano é só dos 18 municípios de Santa Catarina e dos 16 do Rio Grande do Sul. Então já vai melhorar para nós, porque muita gente compra no supermercado um queijo ‘serrano’, mas que é de laticínio. Só com o leite serrano, mas pasteurizado, industrializado”.
Segundo a Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), há cerca de três mil produtores autorizados a vender queijo com a denominação de origem dos Campos de Cima da Serra. Por enquanto, nada mudou para eles. Pelo menos até os consumidores perceberem que o queijo artesanal serrano é tão único quanto um champanhe ou um vinho do Porto.