A sugestão do menu se fundamenta nas três ideias básicas que sedimentam minha pesquisa de doutorado e postura enquanto historiadora: aguçar a diversidade, de modo a desfazer persistentes preconceitos – muitos dos quais habilitam pensamentos e atitudes racistas; ressaltar a aproximação e também os afastamentos entre os comeres de Angola e do Brasil; e demonstrar que a cultura e, sim, também aquilo que se come, é uma construção social realizada processual e dinamicamente, trançada por inúmeras ressignificações atadas e desatadas em meio às relações sociais cotidianas.
Quando a gente fala em comida angolana é muito comum pensar em pelo menos três grandes pratos: a moamba, o mufete e o funje. E com toda a razão! São três preparações com muita história e muita presença em diferentes mesas angolanas ao longo do tempo.
Eu optei, no entanto, por me aproximar desses referenciais a partir de suas formas e elementos fundamentais. Isto porque a cultura é o movimento de transformação e, assim, escapando de uma ideia rígida de origem, saborearemos uma comida angolana muito similar à brasileira, mas que comunica diferentes experiências, províncias, sabores, recursos técnicos e uma alquimia endógena, localizada em tempo e espaço angolanos.
Nós afastaremos a ideia de resgatar um sabor purista ou tradicional. Trata-se de uma sugestão, de uma construção. São diferentes as formas de saber e de comer, de fazer, de preparar um prato, e os elementos dessa composição são escolhas que sempre estão conectadas com trajetórias específicas, com vidas que se cruzam, com detalhes que podem ter valores diferentes para cada malta, cada gênero, cada faixa etária, cada tempo e espaço.
Clássico de Angola
Pois, vamos pôr a mão na massa! Um menu formado em etapas, com uma entrada, um prato principal e uma sobremesa, segue um ordenamento muito comum às diretrizes de uma culinária, digamos, europeia ou ocidental. E que nós, brasileiros, pelo nosso processo histórico, fomos aproximados e dela nos apropriamos. Mas podemos subverter, desviar dos padrões, não é verdade? A entrada, portanto, eu diria que pode ser a vontade de comer, de conhecer aquilo que sabe bem a outra pessoa. O prato principal é rico, nutritivo e completo. Dispensaria apresentações e entradas convencionais.
Sugiro o famoso feijão com óleo de palma e um carapau assado com súmate, servidos com um funje de banana pão e um kihoio. Para adoçar a boca, uma mukunga, e para selar esse encontro um chá de gengibre, que pode ser servido quente ou frio.
Esse feijão é um clássico de muitas mesas em Angola. Um prato substancioso que consegue “puxar qualquer carroça”! Muito rico em ferro, traz um ingrediente comum a todos nós brasileiros: o feijão. Também traz o óleo de palma, produto africano, largamente consumido pelo continente. Gordura vegetal bastante conhecida por nós, especial mas não exclusivamente graças à força da comida baiana, chamada por muitos de “comida de azeite”.
Feijão com óleo de palma: um bem comum
Até 1975, Angola foi colônia portuguesa, submetida a um fenômeno histórico – o colonialismo – cujas hierarquizações justapostas de raça e classe impunham e buscavam limitar as condições materiais e imateriais de vida de muitas populações. As dificuldades eram muitas, as relações de força eram desiguais. Mas o feijão com óleo de palma era um bem acessível em valor e preço. Um bem comum. Atravessava e conectava pessoas, mesas e vivências diferenciadas (o que não quer dizer que um prato represente o apagamento das diferenças e dos conflitos sociais!).
Mas, na altura dos anos 1960, pelo menos em Luanda, todos comiam feijão com óleo de palma. Dizem que os portugueses apoiavam o consumo da iguaria porque também estavam aí metidos na produção do óleo… E, bom, isso há de se verificar porque as técnicas são africanas, tanto quanto toda a sua cultura. Considerado como uma gordura forte e riquíssima em betacaroteno, tão singular em sabor e cor, e apesar de todos os preconceitos o óleo de palma não causava injúria a ninguém.
Encontrava-se um bom feijão com óleo de palma em qualquer taberna. Era ele que dava a cor do prato. Sugiro que ele seja feito como o nosso feijão do dia-a-dia, um feijão manteiga ou marrom para dar contraste com a coloração amarelo alaranjado do óleo. Refogue com aquilo que lhe convier e estiver disponível, alho, cebola, louro, mas eu recomendo cebola e louro porque são aromatizantes e não roubam o protagonismo do sabor do óleo como o alho é capaz de fazer. Só não se esqueça que nesse refogado e nesse fervido não pode faltar um bom bocado de óleo de palma!
Súmate, o vinagrete de Angola
Ao lado do feijão, sugiro um carapau assado com súmate. Outra proteína, mas de origem animal. Da mesma forma que o feijão, que você pode substituir pelo tipo que melhor lhe convenha, a qualidade do peixe também fica a critério do freguês. Importa apenas que a textura seja semelhante, com carne que suporte a assadura e ainda se mantenha úmido. O súmate ou sumatena é um molho à base de água morna ajindungada porque embebida em jindungo. Termo em quimbundo para um tipo de pimenta, jindungo é a conhecida malagueta, que muito se aproxima da piripiri moçambicana.
Pode-se caprichar o súmate com cebola picada, um azeite, limão, sal… Lembra bastante o que chamaríamos aqui de vinagrete. Em receitas históricas, às vezes o súmate já vem descrito como um prato completo, isto é, pedaços de peixe ou carne seca embebidos nesse molho ajindungado. Na altura dos anos 1940, algumas populações rurais de Malanje, província a cerca de 350 km a nordeste de Luanda, estavam impossibilitados de comprar o peixe ou a carne. Então, simplesmente pisavam o gindungo com sal grosso, um bocado de água morna e lançavam nessa mesma água um pedacinho de carvão vegetal para simular o gosto defumado da carne. E, veja, nem por isso ele deixava de se chamar súmate. Por isso eu fiz essa tradução, até mesmo porque o nosso carapau já está na brasa.
Mufete
O casamento entre o peixe e o molho nos aproxima do mufete, prato muito usual em Luanda. Região que desde tempos imemoriais, tinha e tem uma forte cultura do peixe, do ato de pescar ao ato de preparar. Os mais antigos, os chamados kotas, assavam o peixe com escamas e vísceras no calor das brasas do carvão, e depois de pronto colocavam o molho, basicamente sal grosso pisado com uma colher, mesmo aí em uma tigela, com jindungo, limão e água. Acredito que, alterando as imagens, formas – e recuperando o nome súmate que tem tanta história – também assim se contemple o gosto dos mais velhos e o aclamado mufete.
E o funje? Ele também preenche os estômagos há muito tempo! Um ícone. O primeiro registro encontrado é do final do século XVIII. Trata-se de uma massa cozida, sem condimento que pode, a depender da região, ser feita à base de diferentes grãos. Os mais usuais atualmente são o milho e o de bombó, produto feito a partir da mandioca, dependente do trabalho artesanal exclusivo de mulheres angolanas.
Funje de banana
Mas há também registros de funje de batata-doce, massango e massambala (e até de arroz!). Apesar de parecer simples aos olhos de um leigo, não é uma preparação fácil, sobretudo o funje de bombó, porque a farinha é gomada. Há quem o compare com o nosso angu ou pirão, mas pode ser uma comparação arriscada. Funje de banana pão, uma fruta muito consumida localmente e que tem textura e gosto similar à nossa banana da terra, é difícil de encontrar.
Há uma espécie de funje de banana apenas no enclave ao noroeste angolano, em Cabinda, aí entre os Baiombi. Banana pão verde, cozida e bem socada no pilão. Particularmente eu considero uma delícia, é um casamento muito harmonioso com o sabor do peixe, combinação bastante familiar entre as populações ribeirinhas brasileiras. Com essa raridade torna-se possível contemplar novas, mas ao mesmo tempo antigas e desconhecidas preparações (para muitos angolanos, inclusive!). Coloque a banana para assar junto com o peixe, depois pique uma cebola, refogue no azeite e pronto, só colocar a banana assada e amassada e remexer um bocado ao fogo para pegar o gosto. Tens aí em realidade um purê de banana, mas que pode representar a iguaria angolana à base de grãos e tubérculos.
Kihoio de Angola
Por último, para dar uma crocância ao prato, trazemos um kihoio. Em quimbundo essa palavra significa algo esturrado, com sabor próximo, mas não queimado. É uma palavra que não apenas define um prato, mas um sabor, percebe? Algo que “sabe a kihoio”. É muito similar à nossa farofa – porque, veja, a farofa angolana é diferente. Para o kihoio basta farinha de mandioca grossa misturada com uma gordura já usada, queimada, saborizada. Ou então ministrada com óleo de palma aquecido.
Dizem as fontes que, já na década de 1960, era um prato em desuso, mais consumida por caluandas de mais idade – os naturais de Luanda. Nessa altura era feito assim: aquecia-se num tacho um pouco de óleo de palma e, quando quente, mas não demais, acrescentava-se a farinha de musseque, uma farinha de mandioca grossa preparada localmente. Um pouco de sal e jindungo pisados. Remexia-se ao fogo e pronto, já estava o kihoio.
Para adoçar, sugiro a mukunga. Uma prima da nossa pamonha. A diferença é a ausência do leite de coco e/ou açúcar excessivo. E também o formato, a massa de milho verde fresco debulhado e demolhado é cozida em água quente dentro de pequenos canudos feitos com folhagens como a da bananeira. Um trabalho delicado, pueril, feminino e artesanal, que talvez nem todos consigam reproduzir. Para saborizar, um bocado, mas não muito, de açúcar e canela polvilhados e já temos aí a sobremesa da criançada!
Um brinde ao banquete
O brinde fica por conta de um chá de gengibre. Leve, digestivo, anti-inflamatório e antioxidante. Seria interessante sugerir uma bebida local, fermentada, como o quitoto, cerveja à base de milho, mas seria um longo processo envolvendo técnicas rebuscadas e alguns dias. Regaremos o prato com um simples chá cabível a todas as idades, mas igualmente adequado. Frio ou morno, você decide.
O gengibre, suplente do jindungo em algumas receitas, é um rizoma que também tem muita história em Luanda. Compunha um regalo, um brinde afetuoso entre os pares. Tônico, revigorante, era noutros tempos ingerido logo pela manhã pelas matronas e era comercializado nas ruas pelas grandes mulheres mercadejantes, as quitandeiras que zungavam por toda a cidade. Mas como símbolo de afeto, o gengibre não caminha sozinho, mas ao lado da noz de cola. Essa você encontra com o nome de makézù, ingrediente que saboreia a poesia do angolano Viriato da Cruz e a musicalidade do brasileiro Martinho da Vila.
E pronto!
Sobre as quantidades? Quanto baste. Não há segredos em uma cozinha. Apenas muitas histórias…E um par de coisas que nunca são ditas à mesa.