Açúcar vem do sânscrito, mas foram os árabes que nos legaram as-sukkar, como foram eles também que nos passaram ár-raçif para nominar o mais importante porto açucareiro da América portuguesa, o Arrecife dos Navios, o Recife de Pernambuco. Independentemente das coincidências das raízes linguísticas, foi aqui que há quase 500 anos originou-se uma avançada “civilização do açúcar”, forjada na mão de obra de negros escravizados sobre os massapés da Zona da Mata. Em Pernambuco, é quase heresia se fazer dieta de açúcar, já que, desde as capitanias, a economia do Estado sempre foi alicerçada sobre o produto. Era o “ouro branco” cobiçado pelos ingleses no Saque do Recife (1595) e, no século seguinte, pelos flamengos, na Invasão Holandesa. Foi a amálgama que edificou Olinda e a transformou, do alto das suas colinas, numa pequena Lisboa tropical.
Embora socialmente injusta e “amarga”, a lavoura da cana-de-açúcar deu origem a uma rica culinária constituída por doces elaborados e bolos opulentos, como o Souza Leão, o Cavalcanti ou o Luiz Felipe, para citar alguns, muitos dos quais patrimônios culturais e imateriais. Aliás, os bolos vieram dos engenhos de açúcar e têm nome, sobrenome e procedência e, antes mesmo de existir denominação de origem e identidade geográfica, já podiam ser rastreados. É bolo Souza Leão do Engenho São Bartolomeu, do Engenho Noruega ou ainda do Jundiá e do Batateiras, somente para falar do mais famoso, do bolo símbolo da independência gastronômica brasileira, como disse Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, pesquisadora renomada. O Souza Leão de hoje em dia está mais comedido, mas já foi exagerado: massa de mandioca peneirada oito vezes, leite de seis cocos, muito açúcar e manteiga e, pasmem, 18 gemas de ovo. Uma verdadeira revolução promovida pelas quituteiras da casa-grande. Essa rebeldia não se deu apenas com o Souza Leão, mas também com o Luiz Felipe, de mesma origem, com seu ingrediente inconfundível — o queijo-do-reino —, uma das primeiras explosões do dual doce/salgado.
Outros bolos icônicos merecem destaque, como o bolo-de-rolo e o bolo-de-noiva-pernambucano, diferentes de tudo no gênero. O primeiro é feito com uma massa molhada intercalada com goiabada e enrolado em camadas finíssimas, com cuidado para que o doce não ultrapasse a massa. Os puristas admitem apenas a goiabada como recheio e torcem o nariz para recheios surgidos recentemente, como doce de leite e chocolate. Ah! E jamais diga a um pernambucano que bolo-de-rolo é rocambole. É quase uma declaração de guerra. Já o bolo-de-noiva-pernambucano possui massa densa e escura, proveniente da mistura de doce de ameixa, açúcar mascavo, passas ao rum, vinho Moscatel ou Porto e especiarias, diferentemente dos bolos de casamento de massa clara do resto do país. Há quem coloque até queijo-do-reino e goiabada. E ainda é coberto por uma farta camada de glacê-real feito de açúcar-de-confeiteiro e limão. É herança dos ingleses que se fixaram em Pernambuco a partir do século XIX, deixando também o bolo-inglês, de constituição mais simples, mas não menos saboroso.
Gilberto Freyre, sociólogo e autor do célebre Açúcar (1939), afirmava que dos engenhos da Zona da Mata pernambucana também se projetaram os doces conventuais e os doces portugueses que fizeram a fama da cozinha patriarcal, como o papo-de-anjo, sonhos-de-freira, suspiros, arrufos-de-sinhá, toucinho-do-céu, somente para citar alguns.
Em Pernambuco, não basta ser caldo de cana, tem que ser com pão-doce porque açúcar pouco é bobagem. Comida salgada tem que ter doce: pastel de carne moída aqui vira pastel-de-festa, e com açúcar! Queijo de coalho come-se com mel de engenho. O que seria da cartola, a clássica sobremesa de banana Prata e queijo de manteiga, sem o açúcar abundantemente polvilhado por cima com canela?
Andar pelas ruas do Recife é ter os ouvidos adoçados pelos pregões “Japonêêêêês!” Vindo do vendedor do mais famoso dentre os doces de tabuleiro; ou “Mé nôôôôvo de ingeeeeem!”, do vendedor de mel de engenho na lata, ofício que se perdeu no tempo para sempre. E os doces populares? Pixaim, sambongo, currumbá, entre muitos outros trazem a grife africana, como toda a cozinha dos engenhos. Uma volta nas feiras livres pode-se, com sorte, chupar cana pura cortada em roletes enfiados em talas de bambu. Sabor de infância, quase não se vê mais.
“Cana-caiana
cana-roxa
cana-fita
cada qual a mais bonita,
todas boas de chupar…”
…já dizia o gigante Ascenso Ferreira no trajeto de trem pela Mata Sul Pernambucana. Diga-se de passagem, que Ascenso junto com João Cabral de Melo Neto, foram os poetas que melhor traduziram os canaviais numa sociologia em forma de versos.
Bebida em Pernambuco vem da cana-de-açúcar e atende por nomes diversos: cachaça, aguardente, caninha ou pinga. Evidentemente, também é patrimônio estadual. E não sem razão, afinal aqui foi o seu primeiro centro produtor e hoje muitas marcas famosas saem dos alambiques distribuídos do Litoral ao Sertão. Sabia que a primeira cachaça industrializada do país foi a Monjopina, do Engenho Monjope, de Igarassu, em 1756? Um raro exemplar dela está lá no Museu da Cachaça em Lagoa do Carro, a maior coleção do Nordeste, com mais de 12 mil marcas.
Há certa controvérsia em torno do surgimento do primeiro engenho de açúcar, se em São Vicente ou na Ilha de Itamaracá, porém é indiscutível que a usina mais antiga em funcionamento no Brasil é de Pernambuco — a Petribu — moendo desde 1729, quando ainda era engenho. É dela o primeiro açúcar demerara comercializado no país. E falando em subprodutos de engenhos e usinas, “rapadura é doce, mas não é mole não!” Vem do Sertão a melhor. Sertanejo que se preze come com farinha para dar sustância. Duas cidades brigam pelo título de Capital da Rapadura do estado, Triunfo e Santa Cruz da Baixa Verde, com seus canaviais espalhados pela Serra da Baixa Verde.
Açúcar e frutas nativas andam de mãos dadas. Caju, umbu, ubaia, pitanga, guabiraba e muitas outras frutas podem ser comidas frescas, mas têm que virar doces, licores e compotas, “tudo à moda de Pernambuco”. Caju é doce de praia, feito em calda ou em passa, antigamente colocada para secar nos telhados das casas de marisqueiras e pescadores. Umbu ou imbu, como se diz no interior da região, é doce sertanejo e a fruta dá até uma bebida, a saborosa umbuzada feita com leite. Da guabiraba, frutinha cada vez mais rara na Zona da Mata, se faz o doce símbolo de Paudalho e que só se come uma vez no ano, por conta da safra curta. Tem até doces de Carnaval, uma das nossas festas mais afamadas, que o digam os filhoses e jetones coloridos. Falando em festas, o São João é o palco principal de todos os bolos, doces e afins pernambucanos: canjica, munguzá, bolo pé-de-moleque, manuê, bolo de macaxeira, bolos de milho de todos os jeitos, arroz-doce e mais uma infinidade de guloseimas.
No Agreste, a cidade de Pesqueira floresceu com a indústria de doces, dando origem a um polo doceiro famoso que se espraiou pelos Vales dos Rios Moxotó e Pajeú. Em Pesqueira, há ainda o Museu do Doce, instalado no prédio da antiga Fábrica de Doces Rosa. Também Bezerros, com suas dezenas de pequenas fábricas de nego-bom de banana e mariola de goiaba, frutas vindas dos brejos de altitude, as regiões de microclimas singulares do Semiárido. A vila de Poço Fundo, em Santa Cruz do Capibaribe, merece destaque pelos doces que são patrimônio do município e que deu origem a um festival bem conhecido na região. Já no Alto Sertão, a bacia leiteira de Afrânio ganhou notabilidade pela fabricação de um doce de leite branco comercializado em barra.
O açúcar também faz parte da história de vida das mulheres pernambucanas desde sempre, como Dona Menininha, doceira de Agrestina, que é patrimônio vivo de Pernambuco. Sabem por quê? É a rainha única do alfenim, o doce que toma forma de tudo que a imaginação pode proporcionar. Dona Ceci Araújo e sua família guardam a sete chaves a receita do doce de laranja-da-terra, que fez a fama da linda e fria Triunfo. Segredos também são guardados pelas boleiras tradicionais do Recife, cujas receitas estão nas famílias há gerações. Dona Fernanda Dias comanda a mais conhecida confeitaria do Recife e produz iguarias exemplares, como o bolo-de-rolo mais perfeito da cidade, hoje espalhado por todo o Brasil. As filhas de Dona Leoni Asfora, Jane e Eliane, são responsáveis pela manutenção da qualidade de um dos bolos-de-noiva mais cobiçados do Recife, cuja receita herdaram da sua talentosa mãe. Ainda bem que existem as filhas e netas preocupadas em dar continuidade ao trabalho das gerações passadas, que o digam Dona Rita Pereira e sua família em Paudalho, que heroicamente resistem na busca das guabirabas pelos tabuleiros para confecção do raro e excepcional doce.
O açúcar em Pernambuco está entranhado não apenas na gastronomia e nos bens patrimoniais e culturais, mas muito além disso, está profundamente enraizado na formação do seu povo, na sua economia e na influência que o Estado teve sobre toda a Região ao longo de séculos. “Sem o açúcar, não se compreende o homem do Nordeste”, resumiu sabiamente Gilberto Freyre.
Por Josué Francisco da Silva Júnior, Engenheiro-agrônomo, pesquisador em Recursos Genéticos de Fruteiras Tropicais, Embrapa Tabuleiros Costeiros, Recife, PE, josue.francisco@embrapa.br.