Abro uma garrafa de vinho tinto português. Sirvo no copo americano. Sim, aquele que toda família brasileira tem. Admiro a cor, um roxo profundo. Sinto o aroma bem frutado. Bebo um gole devagar. Sinto saudades.
Essa cena já se repetiu muitas vezes. Não que eu não beba vinho em taça, sim, eu bebo. Ou que eu não goste de outros tipos de vinho, mais fechados, amadeirados, sim, eu gosto. Geralmente esses até são meus favoritos. Mas tem dias que quero sentir saudades. Uma saudade boa. Meu avô fazia vinho artesanal no quintal de casa, um vinho frutadíssimo, com sabor que nunca encontrei igual. Só consigo me aproximar um pouco daquela lembrança quando bebo um vinho bem frutado, bem escuro, servido em copo de requeijão. Ele sempre bebeu assim. Essa é a minha imagem do amor ao vinho.
Histórias como a minha são o coração da pesquisa de uma outra amante de vinhos, a Anne Tess Guimarães Araújo de Souza. Formada em Administração de Empresas e especializada em Relações Internacionais, ela deu um jeito de colocar o vinho no centro da sua investigação: em Portugal, na Universidade de Coimbra, ela está concluindo um estudo de quatro anos sobre a relação do vinho com as nossas emoções, a depender do gênero da pessoa e suas experiências pessoais.
A pesquisa busca descobrir como os nossos sentimentos são ativados pelos vinhos. E isso não só na hora de beber, mas no processo inteiro: antes, durante e depois. Da hora em que escolhemos o rótulo até o dia seguinte, a lembrança que ficou daquele momento.
“Eu quero fazer um aprofundamento do que você ama naquele vinho. O inconsciente que o vinho ajuda a trazer para fora.” – Anne Guimarães
A pesquisa se chamada “In vino veritas, a resposta emocional do vinho através do gênero”. A frase em latim In vino veritas poderia ser traduzida como “a verdade está no vinho”, algo que Anne relaciona com a herança cultural e mitológica da bebida. Na antiguidade grega, o vinho era simbolizado pelo deus Dionísio, o deus dos ciclos vitais, das festas, das reuniões alegres, do teatro. O deus dos copos ao alto e das verdades inesperadas.
“Não estou estimulando a embriaguez, claro, mas a gente tem que olhar para esses símbolos, porque eles não estão ali por nada, não é? Eles estão ali durante séculos e têm muita história para contar.” – Anne Guimarães
Além da mitologia, vários outros aspectos influenciam nossos laços com o vinho. Durante nossa conversa, Anne destacou especialmente três.
- História do rótulo
Como apreciadora e observadora nata, Anne foi criando várias teorias ao longo dos anos, até mesmo fora da academia. Ela adora compartilhar a bebida com as amigas e num desses encontros surgiu uma conversa super especial:
“Eu morava na França, em Bordeaux (uma das regiões produtoras de vinho mais famosas do mundo), e um dia recebi uma amiga em casa. Ela disse pra mim: Anne, eu adoro vinho, mas eu não sei degustar, eu escolho pelo rótulo ou pelo preço. Daí eu disse: acho que você não está observando, mas sempre tem motivo.”
“Não é só o preço. Com o mesmo preço você tem várias opções, mas por que aquele? Por que escolhe um? Tem algo por trás disso e a gente nem percebe. Então ela me trouxe a garrafa que tinha comprado. Era um Syrah de um ano que foi muito importante pra ela. Ela começou a chorar. Daí fui trazendo outros aspectos, tirando os véus daquele vinho e da representatividade que cada coisa tinha na vida dela. O nome do rótulo, por exemplo, era algo relacionado a transformação ou metamorfose, e ela estava justamente buscando uma mudança de vida.
Outra coisa importante é observar a história do rótulo, onde ele foi feito. Eu passo muito tempo no supermercado lendo contra rótulo. Às vezes digo: nossa, esse vinho aqui não conta nada legal. Ou: ah, esse sim, esse eu vou levar porque conta uma história. O storytelling tem que ser bom. Eu e minha amiga começamos a ler o contra rótulo do vinho Syrah que ela trouxe e realmente tinha uma forte conexão com ela.”
- Equilíbrio (Yin e Yang)
Dependendo do tipo de vinho, a bebida pode reequilibrar nosso humor ou então agravar aquilo que já não vai bem. Para tornar a explicação mais lúdica, Anne localiza os vinhos dentro da ideia de Yin e Yang, um conceito que trata das forças opostas e complementares da vida. O Yin é o virar-se para dentro, a energia intimista e calma da lua. Já o Yang é o sol: a luz que se abre para o mundo exterior, a energia mais vibrante.
“Na minha pesquisa, o vinho tinto tem todo uma incorporação Yang, enquanto o branco tem um lado Yin. Isso acontece pelas características da uva. Quando você está precisando de uma força, de uma energia, é o vinho tinto que te transmite isso. É o vinho da vitalidade. Então o vinho que você bebe vai moldando, vai negociando com você. Já o vinho branco, rosé ou espumante a gente bebe quando está mais durona, precisando se acalmar.”
- Ancestralidade
Aqui é onde se localiza a minha experiência com o vinho. É onde se desenha a cena com que abri essa reportagem. A ligação que vem de dentro, da nossa origem. Aquilo que liga a memória familiar ao gesto de degustar um vinho. Afinal, essa é uma bebida feita para ser compartilhada em família.
“Os vinhos começam assim, feitos em casa. Toda a história de fazer o vinho sempre foi para consumo próprio. A industrialização é que trouxe essa questão do marketing, de colocar os rótulos. Mas a história do vinho mesmo é caseira, ela é artesanal. É muito mais profundo do que só pegar uma taça e beber, né? Você entra em contato com a sua ancestralidade, com algo que foi feito artesanalmente. É amor puro. E isso a gente sente.”
A pesquisa
O estudo necessitou de tempo, dedicação e estrada. Sob a bênção de Dionísio, Anne percorreu o mapa mundial para entender as emoções e verdades contidas no vinho. Com artigos realizados na Argentina e em Portugal, a última parada teve um sabor de terra sagrada: a Geórgia. O pequeno país de 3 milhões de habitantes, localizado numa Europa quase Ásia, entre a Cordilheira do Cáucaso e o Mar Negro, guarda um conhecimento único no mundo. O vinho mais antigo que se tem notícia, feito há 8 mil anos antes de Cristo. O modo de fazer é o mesmo até hoje. Uma tradição marcada na terra e no sangue das famílias produtoras.
Na viagem à Geórgia, a pesquisadora brasileira conheceu lugares onde estavam as vinícolas originais (sim, aquelas antes de Cristo), viu de perto a ânfora mais antiga do mundo e conversou com as pessoas que hoje são as guardiãs desse conhecimento. Fica atento que em breve o Comida com História vai mostrar tudo sobre essa expedição da Anne. É na próxima reportagem sobre o vinho e as emoções.
Por Amanda Santo