A água engoliu tudo. Os carros, os móveis, a casa, as recordações e, o que é pior: a vida de muita gente. Enquanto eu, Amanda, escrevo esta reportagem, os números oficiais confirmam que 154 pessoas morreram na enchente das últimas semanas no Rio Grande do Sul. O número, infelizmente, ainda pode subir porque mais de cem ainda não foram encontradas.
O maior desastre climático da nossa história. Quem sobrevive, ainda está lutando por resgate, abrigo e comida no prato.
Que comer é um ato político, isso a gente já sabia. Que cozinhar também é um ato político, isso a gente tem afirmado incessantemente aqui no Comida com História. Mas diante da catástrofe, essas verdades batem com ainda mais força. Em meio ao dilúvio que desalojou mais de meio milhão de pessoas, como garantir o pão?
A resposta é aquela que os movimentos sociais já conhecem há anos: mobilização e luta popular. Experiência que hoje tem levado marmita quentinha e dignidade aos abrigos de Porto Alegre e região metropolitana.
As cozinhas solidárias
Comecei a reportagem me apresentando pra ti, sou Amanda, coisa que normalmente não faço. É mania de jornalista se esconder atrás de uma falsa impessoalidade. Mas hoje não há mais estômago pra isso: aqui te escreve uma pessoa mesmo, nascida no Rio Grande do Sul, com o coração apertado como todo mundo. São também pessoas comuns que estão produzindo as refeições para quem perdeu tudo.
A urgência de suprir diariamente as necessidades das famílias atingidas fez com que a própria população tivesse que se virar. Entre troca de Pix, coordenação de abrigos, doações e ajuda em resgates, a produção de marmitas tem sido um dos braços fortes nesse percurso difícil – infelizmente, ainda longe do fim.
Para saber como estão funcionando as cozinhas solidárias durante a crise, procurei uma das mais atuantes. Quem me atendeu foi o Caio Belloli, coordenador estadual do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto), que tem produzido mais de 3.800 marmitas todos os dias desde o início das cheias.
Um trabalho que se intensificou na tragédia, mas não começou agora. Criado em 1997 com objetivo de lutar por moradia digna, emprego e comida para o povo brasileiro, o MTST fundou durante a pandemia do COVID-19 o projeto Cozinhas Solidárias. Em meio à escassez gerada pelo capitalismo e pela crise sanitária, já não bastava repassar doações de cesta básica às famílias vulneráveis. Isso porque nas casas não havia sequer gás de cozinha para preparar o alimento (o gás chegou a subir 50% na época, lembra?).
Foi aí que o MTST resolveu montar cozinhas que servissem a comida prontinha, tendo como modelo as cozinhas comunitárias que já existem há mais de vinte anos nas suas ocupações pelo país. “As cozinhas são o centro de qualquer ocupação. Tudo gira em torno delas”.
Foram criadas 49 Cozinhas Solidárias por todo o Brasil, com o conceito de comida para todos. “Está aberta a todas essas pessoas, aposentados, pessoas em situação de rua e trabalhadores informais, que têm deficiência alimentar. Eles trabalham o mês inteiro e o que ganham não é suficiente pra botar comida na mesa todos os dias.” – Caio Belloli.
Marmita boa e grátis a qualquer um em vulnerabilidade. Tudo à base de doações. Uma grande revolução na luta contra a fome e a subnutrição.
Tragédia ambiental
Diante de desastres, como o do Rio Grande do Sul, essas cozinhas se transformam em verdadeiros QG’s. Viram Cozinhas Solidárias de Emergência, aproveitando a estrutura já existente para ajudar famílias prejudicadas.
Foi assim em 2023, quando as enchentes afetaram o Vale do Taquari (RS): o MTST montou uma cozinha em Arroio do Meio. E está sendo assim agora, neste evento de proporções ainda maiores. Desta vez, está sendo usada a própria estrutura da Cozinha Solidária que existe em Porto Alegre, localizada na Avenida Azenha, 608.
Aberta há 2 anos, a Cozinha da Azenha é a segunda do país em produção de refeições diárias, só fica atrás da unidade da Praça da Sé, em São Paulo. Em tempos normais, a de Porto Alegre costuma entregar 450 marmitas todos os dias.
Agora, foi preciso multiplicar não só o número de refeições, mas também de gente. A equipe normalmente formada por sete pessoas, se transformou em um grupo de 70 voluntários, organizados em escalas de dia e noite. Para se ter uma ideia, todos os dias são usados 250 quilos de proteína animal, 160 quilos de feijão e 200 de arroz, 5 botijões de gás.
“Nós temos muita experiência na construção de cozinhas para grande quantidade de pessoas. Sempre que nos mobilizamos nesses momentos, outros movimentos acabam tendo como referência as cozinhas solidárias. Aqui a produção das marmitas tem começado às 4h da manhã e ido até às 18h.”
O MTST está atendendo 15 territórios da cidade em regime de emergência. E o movimento só aumenta. Cada vez chegam mais solicitações para marmitas.
Além do MTST, centenas de cozinhas, de todas as proporções, foram montadas em regime de emergência. Todo mundo sabe: garantir comida é fundamental para sobrevivermos a essa tragédia.
Outra de enorme importância na crise é a cozinha do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). No assentamento Filhos de Sepé, no município de Viamão, o MST também está produzindo e entregando refeições para as famílias atingidas em cidades da região metropolitana de Porto Alegre. Cidades como Tapes e Pelotas também estão sendo apoiadas pelas marmitas do Movimento.
A luta continua
Caio sabe que o trabalho de assistência às pessoas afetadas não vai acabar tão cedo. Não só porque a água ainda não recuou totalmente, mas porque as mudanças climáticas são uma realidade daqui pra frente. Já estamos todos modificados, nós e a natureza. A luta, então, só está começando. Uma luta que passa por regeneração dos ecossistemas e adaptação das cidades.
Apesar da situação caótica, o coordenador do MTST do Rio Grande do Sul traz uma fagulha de otimismo. A inspiração foi a onda de solidariedade que se formou do dia para a noite.
“A militância gaúcha é aguerrida. Nós não nos escondemos. Assim, nesse enfrentamento, vamos mostrando que somos capazes e vamos conseguindo mudar a sociedade. E isso passa pela luta com protagonismo popular.”
Doações
Para que as quentinhas possam continuar chegando nos abrigos, continue ajudando. Se você tem possibilidade, faça uma ou mais doações. As necessidades ainda serão muitas e por muito tempo. Mas uma coisa é certa: as Cozinhas Solidárias não vão parar até que todas as pessoas tenham comida no prato.
Pra isso, é preciso continuar doando. Tudo depende disso. Abaixo, veja algumas formas de contribuir.
PIX
PIX: enchentes@apoia.se
PIX CNPJ: 09.352.141/0001-48
CUFA RS – Central Única das Favelas
PIX doacoes@cufa.org.br
Comissão Guarani Yvyrupa (organização Mbya Guarani que está atendendo as aldeias afetadas no estado)
PIX 21.860.329/0001-01
Por Amanda Santo.