É inegável que os primeiros habitantes do Brasil foram extremamente prejudicados com a chegada dos europeus em nosso território. A grande maioria morreu por ter sido contaminada por doenças infecciosas. Atualmente, a situação foi agravada com o avanço do homem branco em seu território, que levou desmatamento, originando mudanças na dieta das tribos. A influência da alimentação nas doenças dos índios por ter cada vez mais acesso a produtos industrializados tem sido relacionada ao aumento das Doenças Não Transmissíveis (DNT) entre as suas populações.
O Brasil é o maior país em território da América do Sul. Antes dos colonizadores chegarem em 1500, uma média de 4 a 5 milhões de índios habitavam as terras brasileiras. Hoje, esse número foi reduzido a 460 mil, de acordo com a Fundação Nacional do Índio (Funai), o que corresponde a 0,25% da população do país. Essa população indígena é dividida em 225 etnias, com 180 línguas e dialetos diferentes. Mesmo depois de mais de 500 anos do descobrimento do Brasil, os índios brasileiros ainda lutam para manter sua cultura, tradições, terras e dieta.
Esse artigo apresenta o aumento das Doenças Não Transmissíveis em um grupo específico indígena, o Khisêdjê, que mora nas terras do centro-oeste do Parque Indígena do Xingu, no estado do Mato Grosso.
Parque Indígena do Xingu (PIX)
O Parque Indígena do Xingu está localizado na porção nordeste do estado do Mato Grosso, na parte sul da Amazônia brasileira. Seus 2.642.003 hectares carregam uma biodiversidade enorme, que seria suficiente para a sobrevivência das 16 etnias indígenas que moram lá. O parque foi criado em 1961, e sua demarcação final aconteceu em 1978. Ele foi criado para proteger as terras indígenas das expansões que estavam acontecendo no Brasil naquela época. A demarcação não foi feita de acordo com a vontade das tribos, e muitas terras indígenas foram deixadas de fora, forçando várias etnias a se deslocarem de suas terras nativas para as áreas do Xingu. O que ficou de fora foi usado para a construção de rodovias e para a expansão do mercado imobiliário. O PIX é dividido em Alto Xingu (área cultural do Alto Xingu), Médio Xingu e Baixo Xingu, e cada divisão tem a sua Unidade Básica de Saúde (UBS), onde agentes de saúde indígenas trabalham em conjunto com funcionários da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). As UBSs possuem uma aproximação integral com a saúde indígena, levando em consideração todas as determinantes no processo de saúde e doença: sócio-culturais, políticas, ambientais e biológicas.
A etnia Khisêdjê
O Khisêdjê é o único grupo de indígenas no PIX que fala a língua Jê. Essa etnia foi uma daquelas cujas terras foram deixadas de fora da demarcação do Parque, mas que devido às expansões no Brasil, teve que se mudar para dentro dele na segunda metade do século 18. Seu contato com a área cultural do Alto Xingu fez com que incorporassem tecnologias e hábitos de outras etnias. Eles tiveram que mudar suas comunidades muitas vezes dentro do Xingu, resultando em mortes por problemas de saúde, geralmente relacionadas a doenças transmissíveis.
Doenças Não Transmissíveis (DNT) na etnia Khisêdjê
O estudo ‘Incidência de síndrome metabólica e doenças associadas na população indígena Khisêdjê do Xingu, Brasil Central, de 1999-2000 a 2010-2011’ foi realizado por sete pesquisadores da Unifesp, e comparou dados de 1999-2000 com 2010-2011 de amostras de sangue e testes capilares de indivíduos da etnia Khisêdjê. O objetivo era descobrir se doenças não transmissíveis tinham se tornado mais ou menos frequentes entre eles no decorrer de 10 anos. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), os principais tipos de doenças não transmissíveis são doenças cardiovasculares (como ataques do coração e derrames), cânceres, doenças respiratórias crônicas (como asma e doença pulmonar obstrutiva) e diabetes. O estudo mencionado aqui é focado somente em doenças cardiovasculares e diabetes.
78 indivíduos foram estudados, sendo que 36 (46,2%) eram mulheres e 42 (53,8%) eram homens. Os resultados mostraram que ao longo de 10 anos, as mulheres apresentaram maior incidência acumulada do que os homens para síndrome metabólica (48,1% x 27,6%), obesidade central (60% x 20%) e LDL-C (colesterol ruim) elevado (19% x 3,7%). Enquanto isso, os homens apresentaram maior incidência do que as mulheres para hipertensão arterial (41,7% x 36,2%), hipercolesterolemia (colesterol alto) (33,3% x 24%) e hiperuricemia (níveis altos de ácido úrico no sangue) (21,9% x 5,9%).
A principal conclusão desse estudo se relaciona com a síndrome metabólica, uma importante doença não transmissível associada ao risco de doenças cardiovasculares, diabetes mellitus e mortalidade por todas causas, entre muitos outros prejuízos. Na lacuna de 10 anos, apareceram 21 (37,5%) novos casos de síndrome metabólica, e a incidência foi maior em mulheres, com um total de 13 (48,1%) novos casos na etnia Khisêdjê. A taxa na população brasileira (incluindo os indígenas) para síndrome metabólica é 29,6%, tendo a população indígena a maior incidência no país, 65,3%. Os números provam que os índios brasileiros devem ser apoiados por políticas alimentares específicas para evitar mais mortes do seu já reduzido povo. A alta porcentagem de síndrome metabólica mostra que suas vidas estão em risco, e que este é um problema de Saúde Pública no país.
Possíveis causas do crescimento de DNT nos Khisêdjê
Como mencionado antes, os Khisêdjê tiveram que deixar suas terras nativas para viver no Parque Indígena do Xingu. Somente isso já apresentou uma série de mudanças no seu modo de viver, desde técnicas de caça, modo de cozinhar, disposição das vilas até cultura alimentar (e também dieta). Quando em contato com outras etnias do Xingu e pessoas brancas, eles começaram a sofrer de diferentes doenças infecciosas e parasitas, que eram a causa principal de suas mortes em 1965. Essas doenças ainda estão presentes entre eles, mas as não transmissíveis como hipertensão, intolerância à glicose e dislipidemia (que aumenta a chance de entupimento das artérias e de ataques cardíacos, acidente vascular cerebral ou outros problemas circulatórios) cresceram significativamente nos últimos anos.
Muitos fatores que explicam o aumento de DNT podem ser listados, e não são somente relacionados com mudanças na dieta, mas também redução de atividades físicas, contato com cidades e comidas industrializadas, ajustes culturais, entre outros. Aqui estão alguns:
- Uso de novas tecnologias: ao invés de barcos de remar, eles usam barcos com motor; ao invés de cortar árvores com um machado, eles usam serra elétrica. Essas mudanças fazem com que movam menos o corpo, queimando menos calorias;
- Acesso à comida industrializada: ainda que a distância para chegar a um mercado ou supermercado seja longa (cerca de 5 horas caminhando), os indígenas de hoje têm acesso a comidas industrializadas, e essas adicionaram à dieta deles açúcares, gorduras e sódio, o que não estavam acostumados a ingerir antes;
- Contato com centros maiores: alguns indígenas largaram tarefas em suas vilas para empregos em escritório, resultando em menos atividades físicas e acesso a dinheiro para comprar coisas das cidades. Além disso, com o homem sem caçar, algumas famílias não têm outra opção a não ser substituir alguns tipos de proteínas por comidas ultraprocessadas;
- Como a maioria não tem um nível de instrução elevado, os empregos que conseguem nas cidades pagam salários baixos, o que acarreta na relação entre acesso nutricional e status econômico. Eles podem pagar somente comidas baratas, e essas geralmente não são saudáveis;
- Deserto alimentar: as terras indígenas e seu entorno são desertos alimentares, onde comidas nutritivas são menos encontradas do que as pobres em nutrientes. Claro que a logística no Brasil tem parte da culpa, afinal, o país tem uma área de 8.516.000 Km² e a distribuição de comidas saudáveis não alcança seus territórios pouco populados e, consequentemente, não lucrativos para grandes empresas expandirem suas redes de suprimento até lá. O que é oferecido são commodities “boas” ou comidas “ruins”.
Políticas alimentares do Brasil
Como é verdade em outros países, o Brasil está passando por uma transição em sua ingestão nutricional, comendo menos frutas, legumes, vegetais e comidas não processadas, e mais itens industrializados. A dieta saudável, atividade física e a prevenção do uso de tabaco e álcool são as ações prioritárias na Política Nacional de Promoção de Saúde, que foi aprovada no Brasil em 2006. Para reduzir o consumo de comidas processadas, gorduras saturadas e trans, sódio e açúcar pela população brasileira, as agências do governo, indústria e organizações não governamentais estão trabalhando em conjunto em atividades que visam o melhoramento da saúde da população.
Dentre essas atividades estão a educação do consumidor para que aprenda a escolher comidas saudáveis, adequação nutricional dos rótulos e políticas de execução, todas regulamentadas pelo governo. Como parte da população brasileira, os indígenas vivem sob as mesmas políticas alimentares, tendo acesso (com menos facilidade) aos mesmos alimentos processados e rótulos. Ainda que 76,7% dos índios brasileiros sejam alfabetizados em português, o restante não pode ler os rótulos porque fala outras línguas. A questão que persiste é por que com todos os ajustes feitos nas políticas alimentares e o reconhecimento do aumento de Doenças Não Transmissíveis nas populações indígenas, medidas específicas não estão sendo tomadas para prevenir esse problema de Saúde Pública de se tornar mais crítico?
Modelos de Saúde Pública no Brasil
Se uma análise for feita nos modelos de Saúde Pública em vigor atualmente no Brasil, um misto de quatro pode ser visto – ambiental-sanitário (saneamento das cidades, instalação da água potável, esgotos, etc), biomédico (proteção do indivíduo e prevenção do aparecimento de doenças com prática clínica preventiva), sócio-comportamental (visa influenciar os comportamentos dos indivíduos e das comunidades para a adoção de comportamentos sãos) e de desenvolvimento humano (incorporação da estruturação social sobre o biológico, donde vem a necessidade de reduzir as iniquidades). Todos eles possuem impactos negativos e positivos na saúde dos povos indígenas, mas não têm sido totalmente efetivos em parar ou diminuir o crescimento das DNT que afeta uma parcela considerável desses indivíduos.
A fonte principal de comida dos indígenas é a natureza. Eles dependem de árvores, rios, plantas, pássaros, ar, solo e tudo de natural que os rodeia. Qualquer mudança feita no meio ambiente implica diretamente na oferta, fazendo a comida ficar mais escassa e difícil de encontrar e, em alguns casos, não adequada para consumo. Para os índios, a globalização e poder das largas corporações da cadeia alimentar os afetam duplamente – primeiro, o desflorestamento corta a chance de encontrarem o que estavam acostumados a comer, como carnes selvagens, algumas espécies de peixe, entre outras comidas. Segundo, deixando-os somente com uma fonte para substituir esses alimentos: comida processada que grandes corporações fabricam e vendem.
No mais, fazendeiros, garimpeiros, empresas do setor madeireiro, posseiros e outros meios de exploração econômica estão normalmente rodeando as terras indígenas. Sem falar na construção de hidrelétricas, que os força a sair de suas vilas. Desflorestamento, monocultura de soja e milho e fazendas de gado intensivas estão próximas ao Parque Indígena Xingu, mostrando que a extensão continental do Brasil o transformou em uma joia, indispensável para commodities e grandes corporações sustentarem seus negócios e a crescente demanda mundial. Interesses políticos e econômicos são, neste caso, mais importantes do que a saúde e vida de brasileiros.
Todas essas situações chamam a atenção para o modelo de Saúde Pública ecológico, no qual a existência humana não pode ser dissociada das dinâmicas planetária e biológica. Por que então o governo brasileiro e as entidades responsáveis não adotam este modelo se sabem que a saúde dos índios está conectada com a exploração econômica nas proximidades de seus territórios?
A solução está na raiz do problema
O aumento de Doenças Não Transmissíveis na etnia Khisêdjê é um fato, e o mesmo acontece com outras etnias. Porém, este problema está sendo olhado de cima para baixo, com ações voltadas para a consequência e não a causa. Ensinam os indígenas o que devem comer e o que devem evitar, dão remédio para baixar a pressão sanguínea, e mostram a importância de se exercitar, mas não evitam o que os levou a mudarem seus hábitos, o que causou as doenças que estão vivenciando.
Amrita Rangasami em ‘Failure of Exchange Entitlements’ Theory of Famine: A Response apresenta a ideia que a fome não é exclusivamente a falta de comida, mas também a falta de democracia. Sua teoria pode ser também usada para analisar mais a fundo o aumento de DNT na população indígena no Brasil – o problema não começa quando um indivíduo apresenta os sintomas, mas sim no processo que passa até chegar naquele ponto, podendo ser aspectos político, social, psicológico e econômico.
O aumento de Doenças Não Transmissíveis nos povos indígenas brasileiros é mais fácil de ser entendido olhando para o problema de baixo para cima, pois ele começa com a devastação de suas terras, encolhendo suas fontes de comida natural, forçando-os a pegar empregos pagos para sustentar suas famílias. Adicionado a estes, os desertos de comidas nos quais vivem resultam em acesso principalmente a comidas industrializadas ultraprocessadas.
A saúde dos nossos índios é tão importante quanto a de qualquer outro cidadão do país, e devido à sua situação frágil e diversificação cultural, leis e regulamentos que os protejam e cessem a origem do crescimento dessas doenças deveriam ser prioridade para as entidades de Saúde Pública do Brasil. Infelizmente não se pode voltar atrás para salvar as milhões de vidas indígenas perdidas desde o descobrimento do Brasil, mas pode-se evitar novas mortes dando atenção ao que de fato desencadeia os problemas de saúde que afligem essa parcela de brasileiros.