A gente mostrou recentemente numa reportagem do Comida com História a importância de comer junto com os outros, e disse que a comensalidade é um traço forte da nossa cultura alimentar. Mas quando se trata de populações tradicionais e historicamente oprimidas, que têm a identidade forjada na sobrevivência, esse assunto é ainda mais fundamental.
Nos quilombos, comer junto é um ato de resistência. E a cozinha, o lugar central da comunidade. Quem disse isso é Antônio Bispo dos Santos, filósofo, escritor e líder quilombola, que deixou um legado enorme de ensinamentos sobre a vivência nos quilombos.
Os quilombos são comunidades formadas por pessoas escravizadas que fugiam das fazendas escravagistas e formavam sua própria aldeia de resistência – e de liberdade. Junto com a sabedoria dos indígenas, formam uma cultura alimentar riquíssima e cheia de sabores brasileiros.
Como já dizia Abdias do Nascimento, pensador brasileiro ícone da luta negra no país: “Os quilombos são uma das primeiras experiências de liberdade das Américas”. Essa experiência de liberdade passou necessariamente por libertar os próprios rituais, expressões culturais e culinárias – como, por exemplo, a forma de se relacionar com o plantio, sempre respeitando a terra.
Na cultura de quilombo, as pessoas fazem uso comum da terra. Nenhuma terra tem um dono só. Nenhuma terra recebe uma semente só. A agricultura respeita a sazonalidade e a pluralidade. Nada é feito sem estar em harmonia com o ambiente ao redor – e isso inclui as pessoas. A união entre os moradores da comunidade é a alma do quilombo. Até durante o ato de cozinhar é preciso estar junto. Por isso a cozinha é o centro de tudo!
Arquitetura do encontro
No livro A terra dá, a terra quer, Antônio Bispo dos Santos conta que a arquitetura quilombola foi toda desenvolvida em torno da cozinha, que é o espaço mais amplo da casa. Assume a função de sala, lugar de encontro, comida e conversa boa. Quando alguém chega para visitar, é em volta da comida que é recebido.
A arquitetura é pensada em função da comida. A comida organiza a festa, organiza a recepção, tudo se organiza em torno da comida. Quando fazemos arquitetura, pensamos na comida e na festa, nas formas compartilhadas de vida. – Antônio Bispo dos Santos em A terra dá, a terra quer.
As festas populares acontecem em função da comida de cada época. Mas o alimento, mesmo neste contexto, é mais do que motivo de alegria: é também um pretexto para resistência cultural. Se tantos traços da cultura desses povos foram apagados com as pressões colonialistas, reafirmar as comidas típicas em festejos populares é uma forma de fortalecer o hábito e manter a tradição viva.
Toda prática alimentar que se conecta com as festas se torna mais forte. – Antônio Bispo dos Santos em A terra dá, a terra quer.
A culinária das festas foi tema de uma pesquisa que reuniu algumas das receitas mais tradicionais dos remanescentes de quilombos pernambucanos. No livro Cozinha de Quilombo: Cultura, Patrimônio, Ancestralidade, de Edvania Kehrle Bezerra, o Instituto Federal de Pernambuco – Campus Garanhuns (IFPE-Garanhuns) buscou divulgar práticas alimentares que são patrimônio cultural imaterial do Estado.
O resultado da pesquisa, realizada em sete remanescentes de quilombos, traz histórias e receitas na publicação disponível gratuitamente.
Confluência
Antônio Bispo dos Santos é conhecido pela árdua luta contra-colonialista, uma forma de resistência em que se combate a hegemonia do pensamento branco-cristão-capitalista, reafirmando as outras formas de pensamento, outras formas de ver o mundo, de organizar as pessoas e a natureza – ideias constantemente atacadas e subjugadas pelo sistema dominante.
Por anos morador do Quilombo do Saco-Curtume, em São João do Piauí, em meio à Caatinga, o pensador dizia que toda terra dá o que ela tem, se vivermos de forma respeitosa.
Caatinga é um ambiente riquíssimo, muito vivo. Todas as plantas da Caatinga são alimentícias, medicinais e forrageiras. Todas as plantas são necessárias, não tem uma que não seja. Gafavera, aroeira e juá são folhas secas mais ricas em proteínas do que soja ou milho. – Antônio Bispo dos Santos em A terra dá, a terra quer.
A relação com as plantas e com a comida representa o conceito que rege a vida quilombola: a confluência. Ou cosmologia, outra palavra muito usada por Bispo. É a noção de que estamos conectados com o cosmos, em pé de igualdade com todos os seres viventes, sejam humanos ou não humanos. É assim que se forma a arquitetura nos quilombos, a distribuição das cozinhas e a vida entre todos na comunidade. As palavras de Bispo inspiram o sonho de que, um dia, a confluência seja a forma de a gente viver no planeta inteiro.
Um rio não deixa de ser um rio porque conflui com outro rio, ao contrário, ele passa a ser ele mesmo e outros rios, ele se fortalece. Quando a gente confluencia, a gente não deixa de ser a gente, a gente passa a ser a gente e outra gente – a gente rende. – Antônio Bispo dos Santos em A terra dá, a terra quer.
Foto que abre a matéria: livro ‘Cozinha de Quilombo’