Passar a pé por algumas vielas do Pelourinho, em Salvador, na Bahia, e sentir o perfume do azeite de dendê fritando a massa do acarajé é uma experiência sensorial única. Observar o ritual de montagem dessa iguaria e apreciar a roupa cheia de detalhes da baiana do acarajé fazem parte de uma experiência histórica, cultural, gastronômica e religiosa que levou à inclusão desse ofício na lista dos patrimônios culturais imateriais brasileiros, reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Mesmo assim, muitos que vivenciam a preparação do acarajé não têm a mínima ideia de que esse símbolo da cozinha baiana tem uma ligação forte com o Candomblé, religião afro-brasileira baseada em cultos religiosos trazidos para o Brasil pelos africanos escravizados, e adaptados até dar origem à religião hoje presente.
O Candomblé não existiria sem a comida, pois ela é o elemento de comunicação entre humanos e deuses quando é ofertada como oferenda ao orixá, e essa ligação entre os mundos material e espiritual deve seguir tradições ancestrais, principalmente na preparação dos alimentos.
Comida e religião
Para muitas das religiões, comida é bênção divina. Algumas proíbem certas comidas, enquanto permitem outras. O Judaísmo e o Islamismo, por exemplo, concordam que carne de porco é ‘suja’ e não pode ser ingerida. Os Hindus consideram as vacas animais sagrados, enquanto os Católicos não podem comer carne vermelha durante a Quaresma. Refeições e jejuns marcam rituais comemorativos, e mesmo que a conexão entre religião e comida varie de religião para religião, em uma coisa todas concordam: comida é importante e tem significado.
“Nós (Deus) derramamos água abundantemente e causamos a abertura do solo. Nós provocamos o crescimento do grão e vinhedos, plantas comestíveis, oliveiras, tamareiras, jardins cheios de folhagem, frutas e ervas, tudo para vocês e seus animais aproveitarem.” (Alcorão)
“E então Deus disse, ‘Contemplem, Eu dei a vocês cada semente de planta que existe na superfície da terra, e cada árvore que dá fruta; será comida para vocês e para cada animal na terra e para cada pássaro no céu e para cada coisa que se mova na terra e há vida, Eu dei toda a planta verde para a comida’, e assim foi.” (Bíblia)
As duas passagens acima, tiradas do Alcorão e da Bíblia, apresentam a comida como algo sagrado, oferecido e dado por Deus. Já o Candomblé considera a comida uma energia (axé) palpável, que deve ser oferecida aos orixás para se alcançar os pedidos feitos, mas também para agradecimento e iniciação na religião.
O Candomblé
O Candomblé foi inicialmente criado na Bahia, estado brasileiro que recebeu os primeiros negros escravizados do país, vindos de culturas próximas à Jejê-Nagô. Assim, a reprodução do sistema de crenças deles, após adaptações, deu origem ao Candomblé que, mais tarde, se difundiu para outros estados brasileiros. Os cultos africanos que chegaram no Brasil tinham em comum o uso de comida em seus rituais em forma de oferenda e sacrifícios, e o Candomblé manteve esse costume.
As práticas culinárias da religião, seus ingredientes e pratos são uma prova real de que a mobilidade de comida acontece essencialmente quando é um elemento importante da dieta, medicina ou religião das pessoas que estão se mudando. A diáspora, nesse caso a Bahia, tinha características similares às dos países do oeste africano de onde vieram os negros escravizados, facilitando, assim, a perpetuação de tradições que viajaram com as etnias que chegaram ao Brasil. Essas tradições, em conjunto com as tradições da população indígena nativa, e também a direção dada pelos Jesuítas que estavam no país no mesmo período, fizeram nascer a nova religião do Candomblé.
A chegada dos escravos ao Brasil
No ano 1570, os primeiros navios com escravos tinham chegado ao Brasil, e eles não pararam de chegar até 1850, quando os traslados que cruzavam o Atlântico com prisioneiros foram finalmente declarados ilegais. Entre essas duas datas, de quatro a cinco milhões de africanos foram embarcados para o exterior para trabalhar e viver como escravos em plantações, minas e cidades brasileiras.
O sistema de trabalho forçado do Brasil foi o maior e o mais prolongado de todas as sociedades escravocratas do Atlântico, o que moldou o modo de vida e a cultura brasileira de maneira complexa.
A maioria dos escravos foi embarcada em Angola e no oeste da África entre Benin e Nigéria, uma região que tinha uma média de 200 orixás. Essa enorme quantidade deve-se à grande variedade de etnias naquela área, cada uma com seus orixás, preferências alimentares, cultura e língua. Na Bahia, 16 orixás conectam os planos material e espiritual, sendo que cada um possui preferências e proibições alimentares que devem ser respeitadas durante a preparação dos pratos.
O Candomblé e a comida
De acordo com Patrícia Rodriguez de Souza no trabalho Food In African Brazilian Candomblé (A comida no Candomblé Afro-brasileiro), a comida no Candomblé pode ser entendida como uma linguagem não somente porque pode transmitir mensagens, mas também porque segue uma gramática estrita. Essa gramática dita quais comidas devem ser usadas, para quais propósitos, como, por quem e para quem. Uma mudança em uma dessas variáveis produziria um resultado inesperado: uma comunicação errônea ou uma falta de comunicação.
A comida faz parte de todos os rituais e cerimônias da religião afro-brasileira, e tem dimensões sagradas e profanas ao mesmo tempo. Não existe diferença entre as comidas usadas no dia a dia da cozinha baiana e aquelas usadas nas cozinhas de terreiro, mas por meio de um ritual de preparação, o corriqueiro torna-se sagrado, e essa comida é então denominada ‘comida de santo’.
Cada orixá tem sua comida favorita, e no dia em que um orixá é celebrado, as pessoas comem essa comida. Mesmo que alguns pratos mudem, certos temperos, técnicas e ingredientes de comida de santo ainda permanecerão, e esses são azeite de dendê, camarão seco, quiabo, feijão, cebola, coco, farinha de mandioca, milho, aipim e pimentas.
O abará, o acaçá, o caruru, a farofa e o manjar são comidas oferecidas aos orixás. O acarajé, a mais famosa delas, é uma das preferidas do orixá Iansã. Feito de feijão fradinho moído, batido posteriormente com cebola ralada, água e sal, e frito em azeite de dendê, é finalizado com recheio de vatapá, caruru, salada, pimenta e camarão. Mesmo sendo vendido num contexto profano pelas ruas de Salvador, o acarajé ainda é considerado, pelas baianas, comida sagrada.
A culinária baiana
Quando o Brasil era colônia portuguesa, os negros escravizados eram a única fonte de força de trabalho, e as cozinhas eram um dos locais onde eles trabalhavam.
A cultura africana levou à mesa dos colonizadores mais do que pimenta malagueta, quiabo e azeite de dendê, ela levou adaptações da comida sagrada dos orixás. Segundo a pesquisadora Arany Santana, da Casa do Benin, as escravas realçavam o sabor dos pratos colocando dendê em quase tudo, desde as moquecas até a galinha de xinxim. O azeite que sobrava virava farofa pura ou misturada com banana da terra frita. Usando leite de coco, elas temperavam ensopados, moquecas e escabeches. O bagaço do coco virava cocada branca ou preta, quando misturada com melaço de cana. O caldo que sobrava do cozido português podia, ainda, ser misturado com a farinha de mandioca dos índios e virar um suculento pirão.
A comida do Candomblé tornou-se parte da culinária baiana, e muitos dos seus pratos são consumidos diariamente pela população local e pelos turistas que passam pelo estado anualmente. Aquilo que é considerado meramente gastronomia regional da Bahia por alguns, é sagrado para outros, que acreditam que a comida os aproxima de seus deuses. Mas, mais do que isso, ela os mantém próximos de seus ancestrais.
Imagem destaque: Comidas do Candomblé e seus orixás relacionados (Imagem Superinteressante)