Imagine um prato bem brasileiro. Uma comida que fale sobre a nossa identidade e os nossos costumes.
Pensou?
Talvez você tenha visualizado feijoada, cuscuz, bolo de milho, rosca de polvilho ou até moqueca.
Agora imagine que daqui a 100 anos pouca gente no Brasil vai conhecer ou saber o que essa comida significa. Eu sei, parece absurdo, né? Mas essa é uma realidade de muitas receitas que um dia foram fundamentais para comunidades tradicionais e hoje correm o risco de cair no esquecimento.
Hoje nós vamos falar sobre uma delas: a bijajica. Esse nome diferente, e até gostoso de pronunciar, pode não soar tão familiar a muitas pessoas nascidas no litoral sul de Santa Catarina, mas a história culinária da região não pode ser contada sem que esse doce seja lembrado.
Ainda presente nas casas de muitas famílias do município de Paulo Lopes e até em alguns engenhos de Florianópolis, a bijajica está passando por um processo de resgate por parte de alguns pesquisadores, gastrônomos e profissionais do turismo de base comunitária.
Existem dois tipos de bijajica, uma que parece uma rosquinha, típica da serra catarinense, e outra que é uma espécie de bolo. É sobre o bolo que vamos falar aqui.
Presente na alimentação dos povos indígenas na era pré-colonial, a bijajica recebeu uma forte influência portuguesa quando os imigrantes da Ilha dos Açores chegaram ao litoral catarinense no século XVIII. Com uma pitada açoriana, a receita se tornou o que é hoje: um bolo feito à base de massa de mandioca crua, amendoim, açúcar, erva doce, cravo e canela.
Os indígenas assavam em uma espécie de grelha com fogo bem baixinho, ou então coziam na água, no tucupi ou até fritavam na gordura animal. Já os portugueses passaram a preparar no vapor, que é o método usado até hoje.
Mas por que em extinção?
Com a disseminação dos ultraprocessados e a substituição de antigos preparos por soluções industriais mais práticas (e cheias de aditivos químicos), a bijajica seguiu o mesmo caminho de muitos doces tradicionais brasileiros: o quase esquecimento.
Sim, abrir uma lata de leite condensado pode, muitas vezes, ajudar a enterrar séculos de técnicas e saberes populares. As cidades cresceram, as demandas capitalistas também. Cada vez menos gente tem tempo para reproduzir aquelas antigas receitas que exigiam várias etapas de preparação – mas que também garantiam mais qualidade, ingredientes nativos e um tempo em família apreciando a refeição afetiva e ancestral.
“Essa simplicidade que eu acho que o mundo tá precisando voltar um pouquinho, né? Na simplicidade, nas coisas mais elaboradas e mais afetivas. Isso, um doce com leite condensado talvez não tenha tanta capacidade de trazer, comparando com a bijajica, por exemplo.” – Cláudia Hickenbick, pesquisadora de educação patrimonial e turismo de base comunitária.
A Cláudia faz parte de um programa de extensão do Instituto Federal de Santa Catarina que promove roteiros de turismo de base comunitária em Florianópolis. Passando por comunidades tradicionais da ilha e antigos engenhos, alguns roteiros incluem o resgate da história de comidas como a bijajica, que em algum momento foram a base alimentar de populações locais. Ela conta que, depois de saber a história do prato, a degustação se torna ainda mais especial – os sabores se aprofundam no valor histórico do doce.
“E esse movimento em torno da bijajica movimenta e valoriza os engenhos. É para manter essa linha entre passado, presente e futuro ativa, né? A gente sempre se pergunta: o que tinha no passado que era bom, que dava para manter? O que a gente pode manter hoje para que a gente possa caminhar para um futuro bom?”
Quando conheceu a história desse prato, em 2012, o chef de cozinha e ativista Fabiano Gregório ficou encantado. Passou a se dedicar a estudar e reproduzir as técnicas da bijajica. Levou o doce catarinense para congressos internacionais de gastronomia, e até homenageou o prato dando nome ao seu restaurante de Bija, Comida e Pão. Num esforço de resgate, inscreveu a bijajica num projeto do Slow Food dedicado a alimentos que correm o risco de extinção, o Arca do Gosto.
O Slow Food é um movimento internacional fundado na Itália em 1986, formado por ativistas da alimentação sustentável e justa. Depois da inscrição da bijajica entre as comidas protegidas, é possível encontrar no site da organização uma página inteira dedicada à preservação da memória desse doce.
“A bijajica quase caiu no desuso, e hoje tem pessoas que conhecem ela através do trabalho da pesquisa. Eu faço eventos para valorizar esse tipo de comida. A bijajica sempre está presente, é uma receita ótima para o café da tarde, para comer com cafezinho. Já fiz sorvete de bijajica servido com brownie de café, já fiz receita de bijajica com mel para um livro. É uma maneira de lembrar dela todo dia.” – Fabiano Gregório, chef de cozinha.
Além da bijajica, quantas outras receitas podem estar se perdendo por causa da industrialização? Quantas ainda precisamos resgatar do esquecimento?