No livro Tempos Difíceis, o escritor britânico Charles Dickens descreveu um diálogo provocativo e revelador.
Numa sala de aula cheia de crianças, um professor queria ensiná-las o significado de progresso. Para isso, pediu a uma aluna que imaginasse uma cidade com um milhão de habitantes. Depois, perguntou a ela:
– entre todos esses habitantes, se eu lhe disser que só 25 pessoas morrem de fome por ano, o que isto lhe sugere?
A menina respondeu “que era injusto para com os que morriam de fome, mesmo se os outros fossem um milhão ou um milhão de milhões”.
O professor não gostou da resposta e repreendeu a aluna. Para ele era óbvio: uma cidade com um milhão de habitantes onde morrem de fome “apenas” 25 pessoas por ano é o retrato do progresso e do desenvolvimento.
Charles Dickens escreveu essa história em 1854, mas Tempos Difíceis segue atual até hoje. Tanto que o economista escocês Angus Deaton, vencedor do Prêmio Nobel em 2015, escreveu no seu livro A Grande Saída: Saúde, Riqueza e as Origens da Desigualdade que “cometemos um erro grave ao olharmos somente para o progresso médio ou, ainda pior, apenas para o progresso dos bem-sucedidos”.
Para o economista, há uma dura verdade que não pode ser ignorada: a história do progresso é também a história da desigualdade. Uma triste realidade que seguiu sendo retratada em clássicos da nossa literatura.
“Ao meio-dia, o homem que dirigia o trator parou e abriu sua lancheira: sanduíches embrulhados em papel impermeável, pão de trigo, conservas, queijo. Comeu sem saborear a comida.
Crianças se acercavam curiosas. Crianças maltrapilhas, que comiam uma massa de farinha frita, observavam esfomeadas o homem desembrulhar seus sanduíches e aspiravam o cheiro da conserva e do queijo com seus narizes aguçados pela fome.
Não falavam com o homem do trator. Espiavam-lhe o movimento das mãos que levava a comida à boca. Não lhe olhavam o mastigar da comida, olhavam-lhe somente as mãos que empunhavam o sanduíche.”
(trecho do livro As Vinhas da Ira, de John Steinbeck, vencedor do Prêmio Pulitzer em 1940)
Quando saímos da literatura e vamos para a realidade, a situação se torna dramática. No ano passado, mais de 864 milhões de pessoas em todo o mundo experimentaram insegurança alimentar severa, ficando sem comida por um dia inteiro ou mais. Os dados são do mais recente relatório da ONU sobre o assunto, divulgado há dois meses. O relatório revela ainda que a falta de acesso a dietas saudáveis também é uma questão crítica, afetando mais de um terço da população global – com destaque para a desigualdade entre ricos e pobres: nos países ricos, só 6,3% da população sofre sem acesso a comidas saudáveis, número que salta para 71,5% nos países de baixa renda.
“Se as tendências atuais continuarem, cerca de 582 milhões de pessoas estarão cronicamente desnutridas em 2030, metade delas na África.” – Organização Mundial da Saúde
A boa notícia é que a luta contra a desigualdade alimentar tem ganhado força nos últimos anos. E os movimentos sociais se tornaram atores cruciais nessa transformação. Mas o desafio é imenso porque lutar contra o que chamamos de desigualdade alimentar vai além de lutar por comida na mesa de todos. Significa lutar contra toda uma rede de desigualdades emaranhadas.
Quem afirma isso é a pesquisadora brasileira Renata Motta, do Instituto de Estudos Latino-americanos da Universidade de Berlim, na Alemanha. No estudo Movimentos sociais como agentes de mudança: Combatendo desigualdades alimentares interseccionais, construindo alimentos como redes de vida, Renata fez um grande mapeamento dos principais desafios envolvidos nas lutas contra a desigualdade alimentar. A pesquisa destaca que esses movimentos não apenas denunciam a precariedade alimentar, mas também promovem alternativas sustentáveis e justas.
“Os cidadãos não estão apenas falando sobre comida e mudando seus comportamentos alimentares individuais devido a considerações políticas e éticas, eles estão estabelecendo formas coletivas de promover relações alternativas de produção, distribuição, preparação, consumo e desperdício de alimentos.” – Renata Motta
Entre os movimentos sociais identificados pela pesquisadora como protagonistas dessa luta estão movimentos camponeses, alianças feministas de soberania alimentar, movimentos de justiça alimentar com foco antiracista, movimentos agroecológicos e também veganos. Mas se por um lado essa diversidade pode ser vista como reflexo de força, por outro também ressalta as diferenças entre cada movimento. Por isso Renata acredita que o maior desafio está em procurar alianças, solidariedades e articulações.
“Sistemas alimentares alternativos e contra-hegemônicos exigirão a construção de solidariedades de classe, coalizões inter-raciais e novas ordens de gênero.” – Renata Motta
A pesquisadora traz em seu estudo o exemplo do cruzamento entre as agendas feministas e de soberania alimentar através da colaboração entre o movimento La Via Campesina e a Marcha Mundial das Mulheres, uma aliança feminista popular internacional que tem como foco fundamental a luta contra a fome, a pobreza e a violência sexista. No Brasil algo parecido é realizado pela Marcha das Margaridas, um movimento de mulheres rurais que defende a soberania alimentar e o direito à terra. Essas mulheres, muitas delas agricultoras familiares, lutam por um modelo de produção que priorize a agricultura agroecológica e proteja os modos de vida tradicionais. E fazem isso sem deixar de enfrentar as desigualdades de gênero dentro do setor agrícola, onde as mulheres são frequentemente excluídas das tomadas de decisões e do acesso a recursos.
Existem muitos outros exemplos. Há movimentos de justiça alimentar que denunciam o racismo institucional no sistema alimentar, como a falta de acesso a alimentos nutritivos em comunidades não brancas e pobres. Um preconceito que também se estende à distribuição das terras usadas para a produção de alimentos. No Brasil, de acordo com dados do censo de 2017, os agricultores negros possuem 74% das pequenas propriedades com menos de 5 hectares – mas apenas 28% das grandes propriedades com mais de 1000 hectares. Essa luta por direitos territoriais também mobiliza os povos originários, que entre outras coisas denunciam ainda a insegurança alimentar e a ausência de uma alimentação culturalmente apropriada a essas populações. Em sua pesquisa, Renata Motta identificou algumas estratégias que vêm se revelando bem sucedidas.
“Na nova culinária peruana, a miscigenação se tornou um valor (de mercado). Após séculos de apagamento de elementos indígenas, o Peru está experimentando uma celebração de uma culinária multicultural de fusão que incorpora alimentos indígenas.”
Mas casos como esse também trazem um alerta. A demanda por mais produtos de qualidade criou uma resposta das grandes corporações: o chamado ‘capitalismo verde’ que se apropria seletivamente de pressões dos movimentos sociais para maximizar as oportunidades de lucro. É por isso que o futuro da alimentação passa não apenas pela mudança de hábitos individuais de consumo, mas também pelo apoio a movimentos que lutam por um sistema alimentar justo, sustentável e inclusivo. Escolher produtos artesanais, orgânicos e de origem local é um passo importante, mas apoiar essas lutas coletivas é o que pode, de fato, transformar as estruturas globais de produção e consumo de alimentos.
Ao apoiar essas redes de produtores locais e movimentos por justiça alimentar, você pode contribuir diretamente para a construção de um sistema alimentar mais justo e equilibrado. Como destaca a pesquisa de Renata Motta, é crucial fortalecer a mobilização coletiva para garantir que o acesso a uma boa alimentação seja efetivamente um direito de todos.