“E a mulher de Maheu continuou a lamentar-se, cabeça imóvel, fechando os olhos de vez em quando, à triste claridade da vela. Falou da despensa vazia, das crianças que pediam pão, do café que faltava, da água que dava cólica e dos longos dias passados a enganar a fome com folhas de couve cozidas.” – trecho do livro Germinal, de Emile Zola.
Ao contrário da literatura, a pobreza da vida real raramente tem nome. Costuma ser tratada apenas como um fenômeno econômico, restrita a números e estatísticas como essa: cerca de 733 milhões de pessoas passaram fome em 2023 de acordo com dados da Organização das Nações Unidas. É como se as populações inteiras do Brasil, México, Japão, Alemanha, França, Reino Unido e Itália não tivessem comida suficiente para se alimentar. Mas pobreza é muito mais do que estatísticas e também não é só um fenômeno econômico ou social. Pobreza é um indivíduo, uma família. Ela está no cotidiano, influenciando decisões e afetando diariamente a forma como milhões de pessoas se alimentam em todo o mundo.
Como deixamos isso acontecer? Por que falar em pobreza parece algo tão distante para tanta gente? Foi com essa inquietação que dois artistas decidiram rodar o mundo com um objetivo ambicioso mas também sensível: transformar as estatísticas da pobreza mundial em imagens que nos fizessem entender o que realmente significa ser pobre. Assim nasceu o projeto The Poverty Line (que em português significa A Linha da Pobreza). Ao longo de mais de uma década, a dupla de artistas chineses Stefen Chow (fotógrafo) e Huiyi Lin (economista) percorreu mais de 200 mil quilômetros. O casal passou por 36 países em seis continentes para documentar, por meio da alimentação, como é a vida de quem vive na linha da pobreza em cada região.
“The Poverty Line tenta entender e analisar uma questão muito simples: o que significa ser pobre? Analisamos do ponto de vista das escolhas alimentares disponíveis para quem vive na linha de pobreza de um país. Quando falamos sobre escolhas, precisamos entender a realidade que limita essas escolhas.” – Huiyi Lin.
Cada foto do projeto The Poverty Line mostra alimentos que custaram exatamente o valor diário disponível para uma pessoa que vive na linha da pobreza naquele país. Essa quantia varia de lugar para lugar. Quando o projeto passou pelo Brasil, em 2012, o valor era de apenas R$ 2,33 por pessoa (hoje, reajustado, está em torno de R$ 22 por dia). O que você compraria hoje para comer se só tivesse isso para gastar? Difícil dizer, não é? Para responder, Chow e Lin foram aos mercados locais de cada país e compraram apenas aquilo que era possível. As fotos produzidas aqui no Brasil estão ilustrando essa reportagem (na página oficial do projeto você pode conferir as fotos tiradas em todos os países por onde a dupla passou). Todos os grupos alimentares estão incluídos: vegetais, frutas, alimentos ricos em amido, proteínas e lanches. Cada compra, uma foto.
Todas as fotografias foram produzidas sempre com o mesmo cuidado: os alimentos sobre uma página de jornal local, com iluminação e enquadramento padronizados. O resultado é uma coleção de imagens impactantes que revelam, de forma visual e direta, como a pobreza se manifesta no prato.
Mas a proposta do projeto vai além da fotografia. Ele nos convida a refletir sobre as escolhas — ou a falta delas — disponíveis para quem vive na pobreza. Porque falar de escolhas alimentares é também falar de liberdade, saúde, dignidade e futuro. Ao revelar a globalização de alimentos — tomates e ovos aparecem em pratos de todos os continentes — e, ao mesmo tempo, expor as desigualdades na quantidade e qualidade desses itens, o trabalho de Chow e Lin nos força a olhar de frente para o que muitas vezes ignoramos.
“Isso nos abriu os olhos para o quão conectados estamos por meio de itens alimentares muito comuns. Nos permitiu ver o impacto da globalização e, ao mesmo tempo, a beleza das culturas alimentares locais.” – Huiyi Lin.
A alimentação é uma lente universal. Todos nós precisamos comer todos os dias. Mais do que uma necessidade básica, é um direito universal. E por isso, usar o prato como ponto de partida para discutir pobreza é uma forma poderosa de aproximar públicos diversos de um tema que, muitas vezes, pode nos parecer distante. Projetos como o The Poverty Line não apenas documentam realidades, mas promovem uma conversa essencial sobre desigualdade, consumo e dignidade.
“A pobreza está ligada a muitas coisas na vida: das mudanças climáticas aos conflitos, da migração às crises econômicas. Nossas fotografias não mudam isso, mas estimulam conversas.” – Huiyi Lin.
Por Gustavo Schwabe