Esse texto começa com uma proposição. Eu vou pedir a você, leitor, que feche os olhos quando acabar de ler esse parágrafo. Eu queria que você imaginasse uma comunidade de agricultores familiares. Quem eles são? Como são as suas referências das famílias que a compõem?
Eu tenho quase certeza que a maioria das pessoas que fizerem esse experimento vão pensar em famílias heterossexuais. A ideia da família camponesa, da agricultura ‘familiar’, é uma concepção idealizada. Não só pelo o que se imagina das relações dentro da família, dos tipos de conversa e trabalho que se tem, mas também pela estrutura familiar. Pessoas LGBTIs existem num cenário rural, em uma comunidade camponesa?
Na nossa cabeça, não. E alimentar essa ideia dificulta ainda mais o enfrentamento de certos preconceitos nessas comunidades. Primeiramente, como chegamos nessa situação? Lendo o artigo de Maria Wanderley, “Agricultura familiar e campesinato: rupturas e continuidade”, consegui entender que existem ideias sobre o campesinato – termo ligado fortemente ao movimento político internacional La Via Campesina – que foram construídas através de políticas públicas, e também firmadas por elas.
O termo “agricultura familiar” chega nos anos 90 com a criação do Pronaf (Programa Nacional para a Agricultura Familiar), que em sua escrita se direciona à família nuclear – a cisgênera (cisgênero é quem não é trans*. Uma pessoa que se identifica com o gênero que foi designado a ela ao nascer. Uma família cisgênera é aquela que não possui nenhum membro trans*. ) e heterossexual, o modelo de família – como uma unidade produtiva da agricultura. Ou seja, a produção não é encarada como uma atividade em comunidade, mas sim familiar. E como não existe a possibilidade de uma família que não seja cis, nem hétero, não existe a possibilidade de uma pessoa LGBTI nesse espaço.
Histórias que quase se cruzam
Quando olhamos para trás, é possível ver dois movimentos que crescem apartados pela ideia de pertencerem a espaços diferentes: o movimento camponês e o movimento GLS – sigla utilizada na época, que significava Gays, Lésbicas e “Simpatizantes”. O movimento camponês é o que dá a largada na organização de agricultores e agricultoras no Brasil. Os cientistas sociais que estudam o movimento discutem quando ele começou exatamente, mas um ponto importante nessa história é a formação das Ligas Camponesas em 1945. Logo quando o movimento ganha corpo, ganhando espaço nas Reformas de Base de João Goulart, o golpe militar acontece e o reprime fortemente.
Quase que simultaneamente os LGBTIs urbanos formam um protótipo de movimento através das comunidades de resistência que se formavam especialmente nos centros urbanos, com destaque pra cidade de São Paulo. Durante a ditadura, houve uma perseguição de todas as pessoas que não se conformavam com os gêneros e a sexualidade imposta na época. Os “GLS” e os grupos de travestis eram considerados um perigo à moral da família tradicional. Nos anos 70 existe uma marca significativa da organização desses grupos, que são as publicações “O Lampião da Esquina” e “ChanaComChana”, revistas que eram feitas por e para, respectivamente, a comunidade gay e a comunidade lésbica. O último levou a uma repressão violentíssima do grupo de lésbicas através da chamada “Operação Sapatão”. Paralelo a esses eventos aconteceu a “Operação Tarântula”, que perseguia travestis e pessoas trans* em geral.
Os dois movimentos crescem separadamente: o foco de perseguição LGBTI é em pessoas que já estão fora do armário e lutam por dignidade e direito à vida, em conjunto, nas capitais. O movimento camponês, sufocado, segura as pontas até o fim da ditadura e se transforma em vários movimentos que compõem a Via Campesina hoje em dia, sendo o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) um dos mais proeminentes deles – o MST, inclusive, é o grupo que foi vanguarda em assuntos LGBTIs no movimento camponês internacional.
A ideia que se sustenta é que os viados, as sapatonas e as travestis só existem em um contexto urbano, como formas degeneradas de existência. E, por causa dos confrontos e da construção de que os movimentos camponeses são violentos, de invasores, o campo é imaginado como um lugar hostil. Nas narrativas que são colocadas sobre as pessoas LGBTI na mídia da época, não existe afeto, construção de comunidade, e muito menos um conceito semelhante ao de família. É impossível imaginar uma família LGBTI. No campo, ainda menos.
Comunidades fechadas e insegurança alimentar
A falta de acesso à comida é, em grande parte, a falta de acesso aos recursos como dinheiro, terra, água e biodiversidade – ou todos eles ao mesmo tempo. As comunidade LGBTIs no Brasil são marginalizadas, isso não é novidade. Conseguimos enxergar essa violência nos discursos de políticos, mas também nas páginas de cadernos de violência nos jornais. E isso não deixa de ser verdade para as comunidades rurais.
Os homicídios em espaços rurais motivados pela homofobia, lesbofobia e transfobia são subnotificados no Brasil e ainda assim o nosso país tem um dos maiores números de ataques violentos com essa natureza. Os números que cito aqui são provenientes de estudos feitos por diferentes institutos de pesquisa – com metodologias diferentes – que mostram o mesmo resultado: o Brasil aparece como o país que mais mata LGBTIs em números absolutos no mundo.
O Grupo Gay da Bahia conta 420 mortes violentas no ano de 2018. O Dossiê Sobre o Lesbocídio no Brasil conta 63% dos assassinatos de lésbica no Brasil de 2014 até 2017 aconteceram no que é considerado área rural – e a maioria desses ataques foi cometido por arma de fogo. O Transgender Europe conta 868 mortes violentas de pessoas trans* no Brasil entre 2014 e a metade de 2016, o maior número absoluto no mundo e o terceiro maior em relação à população do país. Todas essas pesquisas, inclusive, discutem o quão subnotificados são os ataques sofridos por pessoas LGBTIs por aqui, incluindo a falta de acesso a informação em áreas rurais.
Também é importante falar sobre a violência que não pode ser medida por mortes violentas. Suicídio, problemas de saúde mental, quebra de parentesco, dificuldade de acesso a empregos formais – com números exorbitantes especialmente na comunidade trans* – são formas de marginalização que atravessam as vidas de muitas pessoas LGBTIs. A insegurança alimentar está presente como uma ameaça em todas as complicações citadas. Estar em situação de insegurança alimentar não significa estar em situação de fome. É mais complexo. Tem a ver com a estabilidade: saber ou não se vai ter o que comer no dia seguinte.
De acordo com a última pesquisa da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais, 90% da comunidade trans* no Brasil tirava o seu sustento de trabalhos informais. Esse tipo de trabalho é considerado um dos fatores na hora de identificar a insegurança alimentar. Pessoas expulsas de casa, com a rede de apoio reduzida, que sofrem retaliação no ambiente de trabalho, entre outras situações, têm outra possibilidade de alimentação. E se você cresceu em um ambiente onde você planta o que come? O que acontece se a comunidade te renega ou você mesmo sente que não se encaixa naquele modo de vida?
Justiça alimentar para pessoas LGBTIs: agora é com a gente
O processo de entender a nossa própria sexualidade ou identidade de gênero como algo que não faz parte do ambiente no qual vivemos contribui bastante para a alienação das pessoas LGBTIs da produção de alimentos e da terra. Isso, por vezes, afeta a nutrição e também as relações culturais com a alimentação e a agricultura. Além disso, o acesso à terra já está em disputa no Brasil há anos. É preciso fortalecer as comunidades tradicionais e rurais no geral, para que a fracção delas composta de pessoas LGBTIs possa continuar fazendo parte dessa resistência.
Trabalhar com educação sobre a questão LGBTI dentro de comunidades produtoras do alimento é essencial. O MST tem feito isso com o primeiro coletivo LGBT dentro de um movimento camponês no Brasil. A formação de comunidades do alimento com produtores LGBTI também é central para que se possa vislumbrar um futuro onde adolescentes que vivem no armário possam se enxergar parte da agricultura sem ter que apagar sua sexualidade ou identidade de gênero. É necessário alimentar a ideia de que as pessoas LGBTI sempre estiveram no campo e têm o direito de dar continuidade a essa existência.
*transsexuais, transgêneros e travestis.
Por Juliana Araújo, jornalista e gastrônoma.