Se uma araucária pode viver por até 700 anos, as sortudas que resistiram à onda de desmatamento dos últimos dois séculos podem dizer que são mais velhas que o próprio Brasil. Não à toa, o pinheiro é um símbolo da região Sul do país, venerado não só pela sua beleza, mas principalmente pela semente que traz o sabor do inverno: o pinhão.
Antes da lei que proibiu o corte, em 2001, a araucária era mais apreciada pela qualidade da madeira. Suas florestas foram reduzidas a 2% da área original. Há cerca de 200 anos – ou metade do tempo de vida médio de um exemplar – elas cobriam um território duas vezes maior que o do estado de Santa Catarina.
Mesmo depois de presenciar a destruição em massa de seus pares, as araucárias que restaram continuam a nos presentear, ano após ano, com grandes e generosas pinhas. Como um agradecimento por terem sido poupadas, elas seguem garantindo renda extra aos moradores do campo. Não mais com a madeira, mas sim com o pinhão, que vem alimentando o povo serrano desde quando os índios Xokleng e Kaingang faziam fogueiras para cozinhá-los – a famosa sapecada na grimpa, hábito que ainda perdura nas fazendas da serra.
A colheita é essencialmente extrativista, e depende do que a natureza oferece. Por todo o histórico de desmatamento das araucárias e em respeito à legislação, os produtores de pinhão não têm muito que fazer a não ser torcer para que a safra do pinhão seja boa. E, quando chegar o mês de abril e a colheita for liberada, tomar coragem para subir nos pinheiros de mais de 10 metros de altura e derrubar as pinhas.
Dilema da preservação
Até por se tratar de uma semente, o consumo de pinhão tem ajudado na lenta regeneração natural dos pinheiros – seja pelos bichos que os enterram para comer mais tarde ou pelos humanos que espalham as pinhas pelo chão durante a colheita. O plantio de pomares, no entanto, não é uma alternativa viável em regiões como a serra catarinense, onde o relevo é acidentado e a mata das araucárias permaneceu densa.
“Não existe manejo e nem plantio, o que é muito ruim para nós, porque quanto mais povoada é a araucária, mais alta ela fica e menos pinhão ela produz. Ela tem que ter espaço para produzir mais, só que a lei não deixa a gente fazer isso”, conta o agricultor Diogo Melo, que colhe pinhas em sua propriedade no município de Painel, maior produtor de Santa Catarina.
A renda que vem do pinhão
A venda de pinhão representa metade da renda anual da fazenda de Diogo, que também cria gado de corte. Para ele, as maiores dificuldades na produção são os pinheiros muito altos e a baixa quantidade de pinhas, o que aumenta o perigo da colheita. Dependendo do preço do quilo, nem sempre vale a pena se aventurar lá no alto. E não compensa plantar novas araucárias em áreas que podem ser usadas na pecuária, até porque é proibido cortá-las depois.
Por tudo isso, os agricultores têm dificuldade em fazer da safra do pinhão uma fonte consistente de renda. É o que explica o engenheiro agrônomo Cesar Alessandro Oliveira de Arruda, extensionista rural da Epagri em Painel. Ele observa que os produtores gostariam de poder realizar um manejo sustentável nas florestas, para diminuir o adensamento dessas araucárias e aumentar a produtividade, gerando renda com a semente e a madeira: “Porém, a legislação não permite o corte, sendo assim, não há incentivo para as futuras gerações plantarem a semente, pois nesse formato a principal renda da propriedade vem hoje da pecuária, e não das florestas. É o que constatamos nas propriedades”.
Existe até uma proposta em tramitação no Congresso com o objetivo de flexibilizar a lei de preservação e permitir o manejo sustentável. O Projeto de Lei 5967/19, do deputado federal Aroldo Martins (Republicanos-PR), estabelece uma série de normas para a exploração econômica das araucárias. O parlamentar sustenta que a legislação atual inibe novos plantios, levando à baixa renovação dos pinheiros e “comprometendo o objetivo da sua retirada da lista de espécies ameaçadas de extinção”.
Quebra de safra
Se a araucária está ameaçada de extinção, com o pinhão não é diferente. Tanto é que a semente foi incluída na Arca do Gosto, um catálogo mundial elaborado pelo movimento Slow Food que identifica alimentos que correm risco de sumir do mercado. A julgar pela safra de 2020, que foi 80% menor que o normal, o cenário é realmente preocupante. Mas tem tudo para melhorar, segundo o engenheiro agrônomo Cesar Arruda.
Ele admite que, ao conversar com vários produtores, ninguém conseguiu se lembrar de uma quebra de safra do pinhão tão grande como a de 2020. Por outro lado, ao observar a formação das pinhas que estarão maduras no próximo ano, ele ficou mais otimista: “Tenho visto pinhas novas para o ano que vem, um pouco mais de perspectivas para a próxima safra, então acredito que não teremos problemas nos próximos anos”.
E as próximas safras?
As causas para essa quebra de safra do pinhão são difíceis de serem identificadas, até porque existem inúmeros fatores que podem afetar a produtividade dos pinheiros. O especialista lembra que as pinhas demoram cerca de dois anos e meio para se formar, entre a polinização e a colheita. “Basicamente, é o vento que faz essa polinização. E nesse período, muita coisa pode acontecer. Qualquer fator climático: granizo, excesso de chuva, seca… E aí você fica com muita variável dentro dessa polinização”, explica Cesar.
“Sempre tem uma oscilação, então temos que ver os próximos anos para ver se mantém as próximas safras. Se houver uma retomada, então está tudo em ordem. Se continuar assim, vamos investigar, vamos botar a pesquisa para trabalhar, alguma coisa tem de errado. Por enquanto, não estou vendo isso”, encerra o engenheiro agrônomo, lembrando que, há três anos, a safra de pinhão foi tão grande que o preço do quilo chegou a cair para R$ 1 – atualmente, está na faixa de R$ 9.
Ao encher a sacola de pinhão no supermercado, talvez muitos consumidores não se deem conta de toda a complexidade e significado desta semente, que vai muito além da sua versatilidade nas receitas. “O pinhão significa muita coisa aqui. O pinhão dá renda, é um alimento forte e também anuncia a chegada do inverno. Representa muito para o nosso povo serrano”, lembra o produtor Diogo Melo. É o pinhão, afinal, que une agricultores como ele aos índios que faziam sapecada na grimpa, no tempo em que as araucárias podiam viver todos seus séculos de vida sem serem ameaçadas.