É final de setembro. Até o momento em que escrevo esta frase, ardemos mais de 80 mil vezes este mês. Nas últimas 48 horas, foram mais de 2 mil vezes. Esses são os números de focos de fogo detectados pelos satélites que monitoram a situação dos biomas brasileiros (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
De forma esmagadora, a Amazônia é a principal vítima dessa tragédia, que já não pode mais ser colocada para “baixo do tapete” – mais da metade de todas as queimadas se concentra na Floresta Amazônica, mas o fumacê corre até o sul do território. Na mata, nos campos ou nas grandes cidades, estamos todos queimando juntos – nós e os nossos pulmões.
A degradação da vegetação nativa, a morte de espécies habitantes da floresta e os impactos à saúde das pessoas já são efeitos mais do que conhecidos – embora a gente ainda não saiba a dimensão a que podem chegar. Mas entre tantos prejuízos causados pelos incêndios (que, não, não são consequência do clima seco, mas sim da ação humana criminosa), está a deterioração do solo e, como consequência, a perda de produtos base da nossa alimentação.
Solo é vida. Solo é presente. Solo é futuro. Isso se houver futuro para o solo.
O chão usado para plantar e colher é muito mais do aquilo que podemos ver crescer na plantação. Existe o que está embaixo. São milhões de microrganismos e espécies construindo um ambiente próprio, um universo à parte do que acontece aqui em cima – o solo é um ecossistema em si, riquíssimo e fundamental para a manutenção de todos os outros ecossistemas visíveis.
Em um relatório de 2020, a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) reuniu 300 cientistas do mundo inteiro para investigar os desafios e as potencialidades da biodiversidade do solo. O documento volta a atenção ao que está sob os nossos pés: um ambiente único e fundamental para a garantia de alimentos, além de responsável por purificar a qualidade do ar e da água, a manutenção da biodiversidade e até o controle climático. Pontos intimamente ligados à segurança alimentar, à saúde e à nutrição da população mundial.
“Existem mais organismos vivos numa colher de chá de solo do que pessoas no planeta”, diz o relatório da FAO.
Se um punhadinho de solo tem tanta vida assim, imagina um território inteiro. A questão é: vamos deixar que essa vida continue ou entregaremos ao fogo?
As grandes organizações, os ambientalistas e o governo já sabem: o aumento das queimadas tem sido creditado à “limpeza” de áreas agrícolas para cultivo de pasto. O fogo é uma forma rápida de troca de cultivo, possibilitando economia de tempo e dinheiro na transição de mata nativa para um vasto campo de pastagem (crime conforme a Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998).
Com as mudanças climáticas, esse fogo acaba se intensificando e perdendo o controle, destinando uma imensa área à degradação. Queima atrás de queima, as camadas superficiais do solo vão perdendo aos poucos tudo aquilo que as constituía, como nutrientes e minerais. Características como umidade e substâncias químicas são alteradas, fazendo com que a terra se transforme em outra.
O desequilíbrio é tanto que a fertilidade acaba sendo afetada, reduzindo a flora e a fauna que dependiam daquele solo para se desenvolver. Isso inclui os nossos alimentos.
Para onde olhar
Nesse momento, mais do que nunca, nossos olhos e ouvidos devem se voltar para as experiências tradicionais de povos cuja identidade está intimidante ligada ao cuidado com o solo. Indígenas e quilombolas vêm desenvolvendo há séculos formas de manejo e cultivo sustentáveis, em confluência com os demais elementos dos biomas. Pesquisas científicas realizadas por instituições como a Embrapa também vêm desbravando cada vez mais possibilidades agrícolas que não atentem contra os recursos naturais.
Além disso, é preciso reforçar fiscalizações baseadas na Lei contra Crimes Ambientais. É preciso vigiar e punir. É mais do que uma questão de policiamento ou justiça. Quando falamos da floresta e do solo, é uma questão de futuro. Futuro da nossa alimentação, da nossa saúde e do nosso planeta.
Saiba mais:
Esse vídeo das Nações Unidas mostra os processos de degradação a que o solo está sujeito – e as consequências disso para o futuro da terra.
Nesta página, a ONG Green Peace relembra o Dia do Fogo, a grande queimada que ocorreu em 2019 no Brasil (quando não sabíamos que ainda teríamos outros “dias do fogo” ainda maiores). No material gráfico, a organização ambientalista explica em detalhes como acontecem os ciclos das queimadas.
Por Amanda Santo.