“Eu fui lá no Ver-O-Peso e perguntei pra um monte de gente. O cara que me fornece disse que tens que deixar de molho antes de ralar, tu tás fazendo isso?”. Essa foi a pergunta que o meu pai fez quando eu me meti a, longe de casa, tentar reproduzir uma receita de tucupi pra uma aula de História da Alimentação do mestrado que estava fazendo na Universidade de Ciências Gastronômicas.
Só pra contextualizar: eu sou uma mulher urbana que nunca teve contato com essa prática ao longo dos anos. Eu comprava tucupi na feira. Ele era um ingrediente presente na maioria das receitas que a gente fazia em casa, e sem essa disponibilidade, parecia que eu cozinhava só o básico. Um litro de tucupi faz falta pra mim, e eu pensava que era a única que sentia essa dificuldade. Queria falar sobre o lugar de onde eu venho nos trabalhos e nas aulas, então persisti.
Por desconfiança dos artigos online a respeito do tucupi, perguntei pra pessoas próximas, que tiveram contato com a produção, como fazer, e fui chegando a uma receita que parecia certa. Errei diversas vezes, já que a única mandioca disponível era uma variedade ganiana de mandioca mansa, branca, sem muito daquele veneno natural que é o ácido cianídrico (o que é bom pra comer ela só cozida, mas não tem o “tempero” pro tucupi ficar igual ao que eu tomava em Belém). A cor era diferente, o gosto era diferente. Só que era um ingrediente tão central pra fazer qualquer coisa que me lembrasse de casa, e era tão caro levar um litro de Belém até a cidade (quase) universitária onde morava, que eu continuava tentando.
Foi nesse momento que me vi tentando explicar para colegas não-brasileiros o que era exatamente o tucupi. É o suco da mandioca descansada. Eu não conseguia achar um palavreado mais compreensível. Eles me perguntavam “como assim descansada?” e eu explicava o processo de produção inteiro. Até que um dia uma amiga me perguntou se a mandioca fermentava durante esse “descanso”. Fui pesquisar e acontece que é exatamente isso o que acontece, pra justamente transformar o ácido cianídrico que existe na mandioca brava (a amarela).
Fermentação é tecnologia indígena
Saber processar uma planta que tem altas concentrações de ácido cianídrico é conhecimento ancestral. O tucupi só existe porque o conhecimento indígena o faz possível – ele e uma cambada de outros subprodutos da mandioca, que alimentam um número exorbitante de pessoas. As receitas que vemos estourar por aí, em grande parte, são conhecimento indígena de seus respectivos lugares. Por exemplo: o kimchi era feito na Coréia com rabanetes antes da invasão chinesa que trouxe o repolho. As populações que lá habitavam se tornaram mestres em preservar os alimentos, primeiro com sal e depois com o Tempo – que uso aqui com letra maiúscula para me referir ao tempo como ingrediente.
É importante sempre fazer referência às culturas humanas quando a gente fala de comida. Especialmente se estamos discutindo uma comida que só existe por causa de uma população que é invisibilizada. Não podemos simplesmente começar a estudar o tucupi só através dos processos físico-químicos que o compõe, sem reconhecer e abrir espaço pra que as comunidades que chegaram nessas tecnologias possam existir dentro dessas narrativas. Esses saberes não nasceram hoje, em um vácuo histórico e cultural, e também não terminam aqui. Eles têm uma história viva, contínua, e é preciso reconhecê-la.
Culturas de bactérias, culturas humanas
Durante o processo de tentativa da produção do tucupi (que aconteceu dentro do meu apartamento, na cozinha pequena e dividida com mais 4 estudantes, coando tudo com um pano na falta do tipiti), acompanhei uma amiga fazer gengibirra (cerveja de gengibre) e outra organizar até uma oficina de kimchi com outros alunos. Ao longo do ano, novos projetos foram surgindo: cerveja, kombucha chucrute, tomates fermentados, casca de melancia, picles… Todos originários de lugares extremamente diferentes no mundo.
A fermentação é necessária na maioria das culturas alimentares cujos pilares existem desde antes da refrigeração. A preservação acontece em 4 instâncias: as conservas, os desidratados, os curados/salgados e os fermentados. Eles também podem ser combinados entre si – geralmente a salga auxilia a produção de comidas desidratadas – e mudam conforme o tempo, assim como a maioria das receitas.
As culturas do tucupi, da gengibirra e do kimchi são diferentes entre si, mas são semelhantes por serem comunidades de bactérias e/ou leveduras que o fazedor daquela receita tem que cuidar. Especialmente aqueles que precisam das receitas em questão pra se sentir em casa, em um lugar comum, quando estão apartados dele. O tucupi era o gosto da minha comida caseira, assim como o kimchi era o da minha amiga da Coréia.
Quando apresentei o tucupi na sala, expliquei o processo que passei para que ele atingisse a cor e a acidez que eu queria. Com a temperatura mais baixa, o processo de fermentação era mais lento. Com a mandioca mansa, o gosto ficava mais adocicado, menos expressivo. Com a minha falta de habilidade no ofício e uma combinação de receitas que nem sempre seguiam os mesmos passos, algum detalhe da complexidade do sabor do tucupi poderia ter escapado. Eu disse que alguns paraenses podiam nem considerar aquilo que fiz como um tucupi. Mas eu esquentei o caldo com alho e cheiro verde (sem chicória-do-Pará, infelizmente), coloquei um pouco da goma que ficou no fundo da bacia de fermentação, servi aos meus amigos e eu me senti em casa.
A experiência de compartilhar os cuidados com as comunidades vivas das quais estava cuidando gerou laços que atravessaram barreiras culturais. Falar de comida também era (e ainda é!) falar de vida, de criação, de cuidado. Deixando descansar a matéria pra que os seres que lá habitam possam se reproduzir. E com isso, sabor! Conseguimos criar uma comunidade nova, que mistura vida daqui e de outro lugar no globo, com meia xícara de uma cultura-mãe.
Por Juliana Araújo, jornalista e gastrônoma.