Mandioca, macaxeira, aipim. Seja lá como você nomeie essa raiz, sua importância não é diminuída pelo nome, e nem poderia, afinal, a mandioca ultrapassou as fronteiras de seu local de origem, a América do Sul, e chegou a diversos países da zona tropical para alimentar cerca de 800 milhões de pessoas, segundo Alfred Crosby em seu trabalho Gran historia como historia ambiental, de 2012. No Brasil colônia, a mandioca já alimentava índios, negros e brancos, e mesmo tendo sofrido preconceito por ser considerada comida indígena, ela persiste firme e forte como uma das principais bases alimentares da população brasileira.
“A mandioca sofreu injúrias horríveis”, conta Cláudio Agenor de Andrade, dono do Casarão Engenho dos Andrade, em Florianópolis. Ele relata que o menosprezo mais grave sofrido pelo alimento tem relação com suas propriedades nutritivas. “Diziam que farinha de mandioca criava gente ‘tola’, e que o rendimento das crianças que se alimentavam dela não era tão bom na escola”, continua ele. De acordo com Cláudio, em 1940 os Estados Unidos começaram a exportar trigo de forma agressiva, e encontraram na América do Sul um mercado afoito em consumir a farinha de trigo. Isso porque os imigrantes europeus que aqui chegaram não conseguiram ter muito sucesso com as plantações de trigo devido ao clima, e sentiam necessidade do produto. Esse fato aliado a campanhas que menosprezavam a mandioca ajudaram a substituir o beiju, que é o “pão do índio” feito a partir da mandioca, nas refeições da manhã e da tarde, pelos produtos feitos com o trigo.
Não é de se estranhar, então, que a farinha de mandioca americana tenha sido essencial nas longas viagens marítimas entre os domínios portugueses. De acordo com o trabalho ‘De farinha, bendito seja Deus, estamos por agora muito bem: uma história da mandioca em perspectiva atlântica’, de Jaime Rodrigues, a farinha de mandioca foi encontrada nos navios da Carreira da Índia, como a Santa Maria da Barca, em 1559. Por ser resistente à ação tempo, muito provavelmente foi embarcada dois anos antes no Brasil, onde o navio fizera escala não planejada a caminho da Ásia.
O fato é que a mandioca é uma importante fonte de alimentação e de história, e que um de seus principais produtos, a farinha, mantém viva a tradição dos engenhos. Seja no norte do Brasil, onde ela tem um aspecto granulado mais próximo às suas origens indígenas, ou no sul, onde é bem fina devido à influência dos europeus em tentar deixá-la o mais parecido possível com a farinha de trigo, a farinha de mandioca vem, pouco a pouco, perdendo sua origem artesanal. Os engenhos têm sido substituídos por indústrias, o que nos traz não somente perda de sabor e aroma, mas de memórias.
“No futuro, o engenho de farinha não vai mais existir. Eu acho que em uns 20 anos só pessoas de sítios vão fazer farinha para manter a tradição”, lamenta Célio Manes, que trabalha no engenho do pai desde que tinha 9 anos de idade. Ele conta que ele é da última geração da família que se interessa pelo trabalho que o pai começou há quase 60 anos, quando construiu o engenho na propriedade da família em Biguaçu, SC. “Naquela época, a gente trabalhava todos os dias durante o inverno. Começava uma da manhã e terminava 10 da noite. Hoje, nós trabalhamos fazendo farinha duas vezes na semana”, relata Célio.
Defensor da farinha de mandioca feita em engenhos, o chef Fabiano Gregório, da Bijajica Ecogastronomia, diz que não existe comparação entre a farinha feita de forma artesanal e a industrializada. “A farinha de engenho é bem mais aromática, e o sabor de tostada é muito mais evidente do que o de uma farinha industrial. Sem contar que quando é feita no dia, ainda quentinha, é como pegar um pão na padaria saindo do forno”, explica o chef. Fabiano utiliza algumas receitas antigas que têm como base a mandioca no café agroecológico de sua empresa. Bijajica do litoral, cacuanga, rosca de polvilho e beiju estão entre elas. A bijajica, que dá nome ao seu negócio, é feita com massa de mandioca, amendoim triturado, açúcar mascavo, cravo, canela e erva doce, e além do sabor, que agrada a todos que a experimentam, preserva parte de nossa história gastronômica.
Assim como Fabiano e Célio, Cláudio também se preocupa com a preservação do feitio artesanal da mandioca nos engenhos. O plantio da mandioca na ilha de Santa Catarina foi diminuindo com a passagem da cidade de rural para urbana, o que contribuiu para a consequente redução dos engenhos de farinha. “Muitos produtores desistiram porque não tinham incentivo”, fala Cláudio. Os engenhos fazem parte da cultura territorial de muitos lugares do Brasil, e o consumo da farinha de mandioca artesanal ajuda a preservar essa tradição. “Se você adicionar na dieta de uma família mais alimentos com base de mandioca do que de trigo, vai ganhar na nutrição, no sabor, e ainda manter viva a cultura dos engenhos de farinha”, finaliza Fabiano Gregório.