O mel de abelhas nativas ainda é pouco utilizado, mas a relação desses insetos e seus produtos com humanos existe desde o tempo em que as populações indígenas da América Central e do Sul eram as únicas que habitavam esses territórios. A utilização dos animais e de seus insumos era feita tanto para a alimentação quanto para fins medicinais, tendo as abelhas um papel fundamental na vida desses indivíduos, assim como na preservação da biodiversidade. No Brasil, as abelhas nativas, também conhecidas como abelhas sem ferrão, são responsáveis por até 90% da polinização das árvores nativas, ajudando a evitar a perda de banco genético. Em Florianópolis, Santa Catarina, há um exemplo vivo de como a interação entre floresta, agricultura e abelhas nativas acontece simbioticamente, gerando benefício para todos.
O Sítio Flor de Ouro, em Ratones, um dos últimos redutos rurais da ilha de Santa Catarina, é um dos maiores produtores de mel de abelhas nativas de todo o Brasil. À frente dele estão Pedro Faria Gonçalves, o “Pedrinho”, e Bruna de Paula, ambos agricultores e meliponicultores, que vivenciam uma relação de troca com os insetos, preservando e plantando espécies que eles gostam de visitar, enquanto utilizam parte do mel e própolis que eles produzem. Entre as variedades de abelhas sem ferrão presentes no sítio estão uruçu amarela, tubuna, guaraipo, mandaçaia, manduri e jataí, cada uma com uma característica física, sendo umas menores, outras maiores, de coloração variada.
A maior parte dos nomes dessas abelhas é de origem indígena, o que comprova o estreito laço entre elas e os povos nativos. De acordo com Arnaldo dos Santos Rodrigues no trabalho ‘Etnoconhecimento sobre Abelhas sem Ferrão: Saberes e Práticas dos Índios Guarani M’Byá na Mata Atlântica’, desde 1542 os Guaranis possuem uma relação com os insetos, e todo o conhecimento entorno deles foi passado oralmente de geração em geração.
No mesmo texto, a fala do índio Guarani Karai Poty mostra como o convívio entre ambos é próximo: “…é a época em que a natureza está renascendo e recomeçando, é a época em que as abelhas também acompanhavam essas fases de aparecimento de flores, era aí que elas aumentavam os ninhos. Isso já nos dizia que iam pôr mais crias e fazer mais mel. É um aviso da natureza para que esperássemos cada coisa acontecer em seu tempo. Assim, quando as abelhas saíam pela manhã, logo cedo e iam em algumas plantas do terreno, mesmo as que não tinham flores, já sabíamos que as flores iam surgir logo, e já sabíamos que a época de muito frio poderia estar acabando. Também aprendi que as abelhas não viviam sem as flores e que as flores não viviam sem as abelhas. Se você encontrar flor é porque tem abelha, e se encontrar abelha é porque tem flor”.
Bruna relata que cada variedade de abelha tem sua preferência por tipos de flores, e que os méis que produzem expressam as flores que elas visitaram, dando diferentes nuances ao sabor do produto final. No sítio do casal, elas gostam de visitar flores de árvores nativas típicas da Mata Atlântica, como pitangueira, jabuticabeira, araçá, ingá, mas também espécies cultivadas como morango, café e chuchu. “Existem agricultores que têm as abelhas para a polinização apenas para a produção agrícola”, explica Bruna. Porém, no Sítio Flor de Ouro é diferente.
Pedro cresceu no sítio após sua família sair de São Paulo em busca de outros valores de vida em contato com a natureza, e foi ali, onde hoje está localizado o Sítio Flor de Ouro, que começou a fazer experiências com agricultura e nunca mais parou. Formou-se em Agronomia, mas desde sempre praticou a agroecologia. “Eu nunca usei veneno e sempre fiz pesquisa prática com orgânicos, aprendi nos processos diários e fui ganhando maturidade”, conta ele. Atualmente, no sítio, utilizam a técnica da agrofloresta no plantio de legumes, frutas e vegetais. Dessa forma, mantêm as plantas nativas e cultivos juntos, um ajudando o outro a se proteger e desenvolver.
Além da venda de cestas de orgânicos, Pedro e Bruna oferecem cursos de agrofloresta e meliponicultura, e comercializam os produtos fabricados pelas abelhas nativas: méis para usos culinários e extrato, pomada, xarope e spray de própolis para uso medicinal. Eles trabalham com a ajuda de outros dois agricultores, e explicam que o astral da equipe, que adora o que faz, aliado à construção de solo pela agrofloresta são determinantes na qualidade dos produtos que oferecem.
O cuidado com a produção os levou a ser convidados a apresentar os méis de abelhas sem ferrão no evento Fruto, que aconteceu em São Paulo em janeiro deste ano. Segundo Pedro, por ser um produto ainda desconhecido pela maioria das pessoas, esse tipo de mel ganhou o status de iguaria, sendo mais conhecido por agrônomos, biólogos e chefs que buscam algo especial. Além de ser diferente em sabor e textura por possuir menos açúcares e, consequentemente, ser mais líquido, sua utilização é também diferenciada. “O recomendado é para a finalização de pratos, sobremesas e saladas”, sugere Bruna.
O Brasil possui mais de 300 espécies de abelhas nativas, e cada bioma tem as suas. Seu modo de produzir mel é totalmente diferente do das abelhas Apis mellifera, que são as europeias e africanas introduzidas no país entre os anos 1839 e 1845, cujo mel é o que normalmente consumimos. Enquanto a Apis mellifera produz grande quantidade de mel em favos, a abelha sem ferrão desenvolve potes de cerume (cera e própolis) entre 0,5 e 4 centímetros, e vai depositando ali o seu mel, em pouca quantidade. Com o tempo, o mel vai maturando dentro do pote, dando mais complexidade ao produto final. Além dessa característica, os méis das abelhas nativas são mais medicinais que o mel comum. “O mel delas é riquíssimo em antibióticos naturais”, salienta Pedro.
Há 15 anos, quando Pedro comprou seu primeiro enxame, não tinha noção de quanto melhoramento as abelhas trariam ao sítio. Em seu isolamento geográfico que lhes permite trabalhar de forma orgânica, respeita os ciclos da terra e da natureza, deixando as plantas e as abelhas se complementarem. Com a chegada de Bruna há 3 anos, achou também seu complemento, e hoje realizam sonhos juntos. Entre eles, a preservação da diversidade cultural e ambiental pela meliponicultura, proporcionando às pessoas a possibilidade de experimentar os sabores das floradas brasileiras.