Entrar no restaurante Dona Mariquita é voltar a um tempo que quase não existe mais na Bahia. Rendas de bilro e rendas rechileud, arte em barro, balaios, parede de barro como as das casas de pau a pique e imagens do Candomblé complementam a cozinha patrimonial da Bahia de Leila Carreiro, uma cozinheira baiana apaixonada pelo seu estado, que serve comida típica baiana, “aquela acessível a todos”, como ela mesma descreve.
O Dona Mariquita está localizado no bairro Rio Vermelho, Salvador, não por acaso. No mesmo bairro ficava o Mercado do Peixe da capital baiana, o qual, no imaginário coletivo dos habitantes da cidade, era onde se comia comida de feira. Como Leila tinha a intenção de servir esse tipo de comida, foi ali que sentiu-se confortável para fazer o que sabia: cozinhar comida simples.
Em 2006, ao abrir o restaurante, a cozinheira já servia pratos com receitas e ingredientes originais de influência indígena, africana e sertaneja, no entanto, ao receber a visita do escritor Guilherme Radel, hoje falecido, se identificou com sua obra ‘A Cozinha Africana da Bahia’, o que a fez ir em busca de mais conhecimento em livros antigos que abordam a cozinha africana na Bahia.
“As informações iam se encaixando com o como fazer, como servir”, explica Leila, que sabe que seu trabalho vai construindo a história e a antropologia das receitas que ela serve no restaurante. O latipá, feito com a folha da mostarda, e o efó, com a folha de taioba ou língua de vaca, por exemplo, são pratos raros de serem servidos pelos chefs e cozinheiros dos restaurantes baianos, mas são mantidos no cardápio do Dona Mariquita, sempre com a preocupação do uso das folhas corretas. Ambos os pratos são do Candomblé, religião afro-brasileira, e possuem um orixá que se relaciona com eles.

Leila não é iniciada no Candomblé, mas tem uma relação forte com a religião, possuindo uma mãe de santo que a protege, além de fazer oferendas a seu orixá. Na Bahia, e em especial Salvador, o Catolicismo convive bem com o Candomblé, e os praticantes dessas duas religiões aceitam os costumes deixados pelos africanos muçulmanos que chegaram durante o período da escravidão. “Aqui muita coisa se mistura, pega-se de uma cultura e mistura-se com outra”, relata ela, tentando mostrar o quanto é rico seu território, e como isso influencia a riqueza gastronômica baiana.
“Sou uma apaixonada pela Bahia. Quando alguém fala em Bahia antiga, eu choro, parece que vivi no século 19. Eu sofro pela dor que foi a escravidão, sofro com o preconceito e o racismo como se os tivesse vivenciado”, fala emocionada. Leila Carreiro acredita ter sido escolhida como representante dessa Bahia antiga que tanto se identifica, e que seu trabalho como cozinheira e pesquisadora da cozinha afro-baiana seja uma missão divina.
Durante a entrevista, que foi uma deliciosa conversa de mais de duas horas, ela contou muitas histórias sobre clientes idosos que vão a seu restaurante e choram ao comer o que é servido. “Isso é coisa da minha infância!”, repete a frase que ouve com frequência. Uma das histórias contadas por Leila, foi durante um dos meses que servia o tabuleiro de mingaus, tão difícil de ser encontrado. As baianas do acarajé, símbolo da Bahia e patrimônio cultural imaterial brasileiro, reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), também possuem a sua versão branca, ou seja, enquanto que no tabuleiro de acarajé servem-se comidas com azeite de dendê, no tabuleiro branco são servidos mingau, bolinho de estudante, acaçá, que são as comidas fufun, sem o uso do dendê.

A cada três meses o Dona Mariquita monta o tabuleiro branco, e durante uma dessas vezes, já com fila formada do lado de fora duas horas antes de iniciar a servir, entraram duas mulheres, mãe e filha. A mãe, de muletas, ao perceber que havia lelê, iguaria africana feita com quirela de milho vermelho, coco ralado, açúcar e leite de coco, ficou comovida. Sua filha contou à Leila que ela nunca saía de casa devido à dificuldade em se locomover, mas quando soube que haveria tabuleiro branco, pediu para ser levada até o restaurante. “O meu trabalho move as pessoas”, fala Leila, explicando que seus clientes vão ao local porque conhecem a receita e o sabor que ela serve.
Leila Carreiro continua estudando e pesquisando livros antigos, mas quando se depara com a nova gastronomia e as substituições de ingredientes, preocupa-se com a descaracterização da imagem de um prato histórico, e defende a importância de colocar a referência ao que essa nova versão se refere, para que as pessoas não pensem que o novo é o original.

Com o sonho de que o Dona Mariquita se torne um centro cultural, onde a comida se mistura à arte da Bahia, com espaço para leitura e história, assim como para a capoeira, Leila afirma que seu restaurante possui um ambiente especial, com energia, onde causos acontecem, e deseja que nele o baiano encontre orgulho de seu passado. “A história da Bahia é de muito sofrimento, chibatadas. As pessoas daqui têm vergonha e não querem ser relacionadas com isso”, analisa.
O que vejo e me encanta na Leila é que ela chama o Dona Mariquita de casa, e é na sua casa que ela serve a história da Bahia em forma de comida, de afeto. Seu amor pelo o que a cozinha representa vai muito além da busca pelo resgate histórico, mas reforça a oportunidade que ela dá ao povo baiano de valorizar sua cultura, uma das mais ricas do Brasil, quiçá do mundo.